sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Capitulos

Davos

James

Tyrion

Arya

Catelyn

Jon

Sansa

Arya

Sanwel

Tyrion

Catelyn

Catelyn

Trouxeram os cadáveres nos ombros e pousaram-nos sob o estrado, O silêncio caiu sobre o salão iluminado por archotes, e nele Catelyn conseguiu ouvir Vento Cinzento uivando a meio castelo de distância, Ele sente o cheiro do sangue, pensou. Através de paredes de pedra e portas de madeira, através da noite e da chuva, mesmo assim reconhece o odor da morte e da ruína. Estava à esquerda de Robb, junto ao cadeirão, e por um momento sentiu-se quase como se estivesse olhando seus próprios mortos, Bran e Rickon, Aqueles rapazes eram muito mais velhos, mas a morte encolhera-os. Nus e molhados, pareciam umas coisinhas tão pequenas e tão imóveis que era difícil lembrar deles com vida. O rapaz louro andava tentando deixar crescer uma barba. Uma penugem amarelo- -clara cobria suas bochechas e seu queixo por cima da ruína vermelha em que a faca transformou a sua garganta. Seus longos cabelos dourados ainda estavam molhados, como se tivesse sido arrancado de um banho. A expressão era a de quem havia morrido em paz, talvez dormindo, mas seu primo de cabelos castanhos tinha lutado pela vida. Seus braços exibiam cortes onde havia tentado parar as lâminas, e gotas vermelhas ainda pingavam das punhaladas que lhe cobriam o peito, a barriga e as costas como outras tantas bocas sem língua, embora a chuva o tivesse lavado quase por completo. Robb tinha posto a coroa antes de entrar na sala, e o bronze brilhava, escuro, à luz dos archotes, Sombras esconderam seus olhos quando observou os mortos. Será que ele também vê Bran e Rickon? Catelyn poderia ter chorado, mas já não lhe restavam lágrimas. Os rapazes mortos estavam pálidos devido ao longo encarceramento, e ambos eram de tez clara; contra a pele lisa e branca, o sangue era chocantemente rubro, insuportável de contemplar. Será que irão colocar Sansa nua sob o Trono de Ferro depois de a matarem? Irá sua pele parecer assim tão branca, seu sangue tão vermelho? Do exterior chegavam o ruído contínuo da chuva e os inquietos uivos de um lobo. O irmão, Edmure, estava a direita de Robb, com uma mão apoiada no espaldar da cadeira do pai, e o rosto ainda inchado de sono. Tinham-no acordado, tal como a ela, batendo em sua porta, na noite cerrada, para arrancá-lo rudemente dos sonhos. Eram bons sonhos, irmão? Sonha com a luz do sol com risos e com os beijos de uma donzela? Rezo para que sim. Os sonhos dela eram escuros e fustigados por terrores.
Os capitães e senhores vassalos de Robb espalhavam-se pelo salão, alguns armados e com as cotas de malha vestidas, outros em vários estados de desalinho e nudez. Sor Raynald e o tio, Sor Rolph, encontravam-se entre eles, mas Robb tinha achado por bem poupar sua rainha daquela monstruosidade. O Despenhadeiro não fica longe de Rochedo Casterly, recordou Catelyn. Jeyne pode perfeitamente ter brincado com esses garotos quando eram crianças. Voltou a baixar o olhar para os cadáveres dos escudeiros Tion Frey e Willem Lannister, e esperou que o filho falasse. Pareceu passar-se muito tempo até que Robb erguesse o olhar dos mortos ensangüentados. ~ Pequeno-Jon - disse -, diga ao seu pai que os traga. - Sem uma palavra, Pequeno- -Jon Umber virou-se para obedecer, com os passos ecoando no grande salão de pedra. Enquanto Grande-Jon introduzia os prisioneiros na sala, Catelyn notou o modo como alguns dos outros homens recuavam para lhes dar espaço, como se a traição pudesse de algum modo ser transmitida por um toque, um olhar, um pouco de tosse. Os captores e os cativos eram muito parecidos; homens grandes, todos eles, com barbas espessas e cabelos compridos. Dois dos homens de Grande-Jon estavam feridos, e três de seus prisioneiros também. Só o fato de alguns terem lanças e outros bainhas vazias os distinguia. Todos usavam camisões de cota de malha ou camisas de anéis cosidos, com botas pesadas e mantos grossos, alguns de lã, outros de peles. O Norte é duro efrio, e não tem misericórdia, Ned tinha lhe dito quando ela veio a Winterfell pela primeira vez, mil anos antes. - Cinco - disse Robb quando os prisioneiros foram postos à sua frente, molhados e silenciosos. - São todos? - Eram oito - trovejou Grande-Jon. - Matamos dois quando os capturamos e um terceiro está agora agonizando. Robb estudou o rosto dos presos. - Foram precisos oito de vocês para matar dois escudeiros desarmados. Edmure Tully interveio. - Eles também assassinaram dois de meus homens para chegar à torre. Delp e Elwood. - Não foi assassinato, sor - disse Lorde Rickard Karstark, que não se mostrava mais derrotado pela corda que prendia seus pulsos do que pelo sangue que corria por seu rosto. - Qualquer homem que se interponha entre um pai e a sua vingança está pedindo a morte. As palavras dele ressoaram nos ouvidos de Catelyn, duras e cruéis, como o bater de um tambor de guerra. Sua garganta estava
completamente seca. Fui eu que fiz isso. Estes dois rapazes morreram para que minhas filhas pudessem sobreviver. - Eu vi seus filhos morrerem naquela noite no Bosque dos Murmúrios - disse Robb ao Lorde Karstark. - Tion Frey não matou Torrhen. Willem Lannister não tirou a vida de Eddard. Assim, como pode chamar isso de vingança? Isso foi uma loucura, e um assassinato sangrento. Seus filhos morreram honradamente no campo de batalha, de espada nas mãos. - Eles morreram - disse Rickard Karstark, sem ceder um milímetro. - O Regicida abateu-os. Estes dois eram da laia dele. Só sangue pode pagar sangue. - O sangue de crianças? - Robb apontou para os cadáveres. - Que idade eles tinham? Doze anos, treze? Escudeiros. - Morrem escudeiros em todas as batalhas. - Sim, morrem lutando. Tion Frey e Willem Lannister entregaram as espadas no Bosque dos Murmúrios. Eram prisioneiros, trancados numa cela, adormecidos, desarmados... garotos. Olhe para eles! Lorde Kastark preferiu olhar para Catelyn. - Diga à sua mãe para olhar para eles - falou. - Ela matou-os tanto quanto eu. Catelyn apoiou uma mão no espaldar da cadeira de Robb. O salão pareceu girar à sua volta. Sentiu-se prestes a vomitar. - Minha mãe não teve nada a ver com isso - disse Robb, irritado. - Isso foi obra sua. O assassinato foi seu. A traição foi sua. - Como pode ser traição matar Lannisters quando não é traição libertá-los? - perguntou rudemente Karstark. - Vossa Graça esqueceu-se de que estamos em guerra com o Rochedo Casterly? Na guerra, matam-se os inimigos. Seu pai não lhe ensinou isso, rapaz? - Rapaz? - com o punho revestido de cota de malha, Grande-Jon deu uma bofetada que deixou Rickard Karstark de joelhos. - Deixe-ol - a voz de Robb ressoou com autoridade. Umber afastou-se do cativo. Lorde Karstark cuspiu um dente. - Sim, Lorde Umber, deixe-me para o rei. Ele pretende me dar uma descompostura antes de me perdoar. E assim que ele lida com a traição, o nosso Rei no Norte, - Sorriu um sorriso úmido e vermelho. - Ou será que devo chamá-lo de Rei que perdeu o Norte, Vossa Graça? Grande-Jon tirou uma lança das mãos do homem que estava ao seu lado e ergueu-a sobre o ombro. - Deixe-me atravessá-lo, senhor. Deixe-me abrir a barriga dele para vermos a cor de suas tripas. As portas do salão abriram-se com estrondo, e Peixe Negro entrou com água escorrendo do manto e do elmo. Homens de armas Tully
seguiram-no, enquanto lá fora relâmpagos cruzavam o céu e uma chuva forte e negra assolava as pedras de Correrrio. Sor Brynden tirou o elmo e caiu sobre um joelho. - Vossa Graça - foi tudo que disse, mas seu tom lúgubre falava por si. - Ouvirei em privado o que Sor Brynden tem a dizer, na sala de audiências. - Robb levantou-se. - Grande-Jon, mantenha Lorde Karstark aqui até a minha volta, e enforque os outros sete. Grande-Jon abaixou a lança. - Até os mortos? - Sim, Não quero essa gente conspurcando os rios do senhor meu tio. Que alimentem os corvos. Um dos prisioneiros ajoelhou-se. - Misericórdia, senhor. Eu não matei ninguém, fiquei só à porta, de vigia, por causa dos guardas. Robb refletiu naquilo por um momento. - Conhecia as intenções de Lorde Rickard? Viu as facas desembainhadas? Ouviu os gritos, as súplicas de misericórdia? - Sim, mas não participei. Era só o vigia, juro... - Lorde Umber - disse Robb este era só o vigia. Enforque-o por último, para que possa vigiar a morte dos outros. Mãe, tio, venham comigo, por favor. - Deu as costas enquanto os homens de Grande-Jon cerravam fileiras em volta dos prisioneiros e os levavam do salão sob a ameaça de lanças. Lá fora, os trovões ribombavam e estrondeavam, tão alto que parecia que o castelo estava ruindo em volta de seus ouvidos. Será este o som de um reino desmoronando?, perguntou Catelyn a si mesma. Estava escuro dentro da sala de audiências, mas pelo menos o som dos trovões era abafado por mais uma parede de pedra. Um criado entrou com uma candeia de azeite para acender a lareira, mas Robb mandou-o embora e ficou com a candeia. Havia mesas e cadeiras, mas só Edmure se sentou, e levantou-se quando percebeu que os outros permaneceram em pé. Robb tirou a coroa e pousou-a na mesa, à sua frente. Peixe Negro fechou a porta. - Os Karstark desapareceram. - Todos? - seria ira ou desespero o que pesava daquela maneira na voz de Robb? Nem mesmo Catelyn tinha certeza. - Todos os guerreiros - respondeu Sor Brynden. - Algumas seguidoras de acampamento e criados foram deixados com os feridos. Interrogamos tantos quantos foram necessários para nos certificarmos da verdade. Começaram a partir ao cair da noite, escapando a princípio um a um ou dois a dois, e depois em grupos maiores, Foi ordenado aos feridos e criados que mantivessem as fogueiras acesas para que ninguém soubesse que tinham partido, mas depois que começou a chover, deixou de valer a pena.
- Irão voltar a se agrupar longe de Correrrio? - perguntou Robb. - Não. Espalharam-se, à caça. Lorde Karstark jurou oferecer a mão de sua filha donzela a qualquer homem, bem ou malnascido, que lhe traga a cabeça do Regicida. Que os deuses nos vaíham. Catelyn voltou a sentir náuseas. - Quase trezentos cavaleiros e duas vezes mais montar ias desaparecidos na noite, - Robb esfregou as têmporas, no local onde a coroa havia deixado sua marca, na pele macia acima das orelhas. - Todas as forças de cavalaria de Karhold, perdidas. Perdidas por mim. Por mim, que os deuses me perdoem. Catelyn não precisava ser um soldado para compreender a armadilha em que Robb se encontrava. Por ora, controlava as terras fluviais, mas seu reino estava cercado de inimigos por todos os lados, exceto pelo leste, onde Lysa se empoleirava em seu cume de montanha, Até o Tridente estava pouco seguro desde que o Senhor da Travessia retirara sua fidelidade. E agora perdemos também os Karstark... - Nem uma palavra sobre isso deve sair de Correrrio - disse Edmure. - Lorde Tywin faria... os Lannister pagam as suas dívidas, sempre dizem isso. Que a Mãe nos guarde quando ele souber. Sansa. As unhas de Catelyn enterraram-se na carne macia das palmas de suas mãos, tal foi a força com que cerrou os punhos. Robb lançou a Edmure um frio olhar, - Quer me transformar num mentiroso além de um assassino, tio? - Não precisamos falar nenhuma falsidade. Basta não dizer nada. Enterramos os rapazes e permanecemos em silêncio até o fim da guerra. Willem era filho de Sor Kevan Lannister e sobrinho de Lorde Tywin. Tion era filho da Senhora Genna, e um Frey. Temos também de manter a notícia longe das Gêmeas, até... - ... até conseguirmos trazer os assassinados de volta à vida? - disse Brynden Peixe Negro em tom cortante. - A verdade fugiu com os Karstark, Edmure. E tarde demais para esses jogos. - Devo a seus pais a verdade - disse Robb. - E a justiça. Também lhes devo isso. - Fitou a coroa, o brilho escuro do bronze, o círculo de espadas de ferro. - Lorde Rickard desafiou-me. Traiu-me. Não tenho escolha a não ser condená-lo. Só os deuses sabem o que fará a infantaria Karstark que está com Roose Bolton quando lhes chegar a notícia de que executei seu suserano por traição. Bolton precisa ser prevenido. - O herdeiro de Lorde Karstark também estava em Harrenhal - recordou-lhe Sor Brynden. - O filho mais velho, aquele que os Lannister capturaram no Ramo Verde. - Harrion. Chama-se Harrion. - Robb soltou uma gargalhada amarga, - Um rei faz bem em conhecer o nome de seus inimigos, não acha? Peixe Negro lançou-lhe um olhar astuto,
- Sabe disso com certeza? Que isso fará do jovem Karstark seu inimigo? - O que mais poderá acontecer? Estou prestes a matar o pai dele, não é provável que me agradeça. - Pode agradecer, Há filhos que odeiam os pais, e com um só golpe estará transformando-o no Senhor de Karhold. Robb balançou a cabeça. - Mesmo se Harrion fosse esse tipo de homem, nunca poderia perdoar abertamente o homem que matou seu pai. Seus próprios homens iriam se voltar contra ele. Estamos falando de nortenhos, tio. O Norte tem memória. - Então perdoe-o - sugeriu Edmure Tully. Robb fitou-o com franca incredulidade. Sob aquele olhar, o rosto de Edmure corou. - Poupe sua vida, quero dizer. Não gosto mais da idéia do que você, senhor. Ele também matou homens meus. O pobre Delp tinha acabado de se recuperar do ferimento que Sor Jaime lhe infligiu. Karstark deve ser punido, certamente. Mantenha-o acorrentado. - Um refém? - disse Catelyn. Poderia ser melhor... - Sim, um refém! - o irmão tomou a sua reflexão por concordância. - Diga ao filho que, desde que permaneça leal, o pai não será maltratado. Caso contrário... agora não temos esperança de reconquistar os Frey, nem que eu me oferecesse para casar com todas as filhas de Lorde Walder e transportasse sua liteira, Se também perdermos os Karstark, que esperança nos restará? - Que esperança,.. - Robb suspirou, afastou os cabelos dos olhos e disse: - Nada nos chegou de Sor Rodrik no norte, nenhuma resposta veio de Walder Frey à nossa nova oferta, recebemos apenas silêncio do Ninho da Águia. - Apelou à mãe. - Sua irmã não nos responderá nunca? Quantas vezes terei de lhe escrever? Não quero acreditar que nenhuma das aves chegou até ela. Catelyn percebeu que o filho queria ser confortado; queria que ela lhe dissesse que tudo ficaria bem. Mas seu rei precisava da verdade. - As aves chegaram ao Ninho da Águia. Embora ela possa lhe dizer que não, se alguma vez chegarem a falar do assunto. Não espere ajuda desse lado, Robb. Lysa nunca foi corajosa. Quando éramos meninas, ela fugia e escondia-se sempre que fazia algo errado. Talvez pensasse que o senhor nosso pai esqueceria de se zangar com ela caso não fosse capaz de encontrá-la. Agora é a mesma coisa. Ela fugiu de Porto Real por medo, para o lugar mais seguro que conhece, e recolhe-se em sua montanha com a esperança de que todos a esqueçam. - Os cavaleiros do Vale poderiam fazer toda a diferença nesta guerra - disse Robb mas se ela não quer lutar, que assim seja. Só lhe pedi que
nos abrisse o Portão Sangrento e nos desse navios em Vila Gaivotas para nos levar ao norte. A estrada de altitude seria difícil, mas não tão difícil quanto abrir caminho pelo Gargalo lutando. Se conseguisse desembarcar em Porto Branco, poderia flanquear Fosso Cailin e expulsar os homens de ferro do norte em meio ano. - Isso não acontecerá, senhor - disse Peixe Negro. - Cat tem razão. A Senhora Lysa é temerosa demais para deixar entrar um exército no Vale. Qualquer exército, O Portão Sangrento permanecerá fechado. - Então que os Outros a levem - praguejou Robb, numa fúria causada pelo desespero. - E o maldito Rickard Karstark também. E Theon Greyjoy, Walder Frey, Tywin Lannister e todos os outros. Pela bondade dos deuses, por que alguém haveria de querer ser rei? Quando todos estavam gritando Rei no Norte, Rei no Norte, eu disse a mim mesmo. .Jurei a mim mesmo.., que seria um bom rei, tão honrado quanto o pai, forte,justo, leal para com os meus amigos e bravo quando enfrentasse os inimigos... agora sequer sei distingui-los uns dos outros. Como foi que tudo isso ficou tão confuso? Lorde Rickard lutou ao meu lado em meia dúzia de batalhas. Os filhos dele morreram por mim no Bosque dos Murmúrios. Tion Frey e Willem Lannister eram meus inimigos. Mas agora tenho de matar o pai de meus amigos mortos por causa deles. - Olhou-os. - Os Lannister vão me agradecer pela cabeça de Lorde Rickard? E os Frey? - Não - disse Brynden Peixe Negro, direto como sempre. - Mais um motivo para poupar a vida de Lorde Rickard e mantê-lo como refém - insistiu Edmure. Robb estendeu ambas as mãos para baixo, ergueu a pesada coroa de bronze e ferro e voltou a colocá-la na cabeça, e de repente era um rei novamente. - Lorde Rickard morre. - Mas por quê? - perguntou Edmure. - Foi você mesmo que disse... - Eu sei o que disse, tio. Não muda o que tenho de fazer. - As espadas de sua coroa encostavam-se, rígidas e negras, contra a sua testa. - Em batalha poderia ter matado Tion e Willem em pessoa, mas isso não foi uma batalha. Eles estavam dormindo em suas camas, nus e desarmados, na cela em que os coloquei. Rickard Karstark matou mais do que um Lannister e um Frey. Matou a minha honra. Tratarei dele à alvorada, Quando o dia nasceu, cinzento e gelado, a tempestade se reduzira a uma chuva contínua, mesmo assim o bosque sagrado estava repleto de gente. Senhores do rio e nortenhos, de alto e baixo nascimento, cavaleiros, mercenários e cavalariços espalhavam-se entre as árvores para ver o fim da dança negra da noite. Edmure dera ordens, e um cepo de carrasco fora colocado em frente à árvore-coração. Chuva e folhas
caíam em volta deles quando os homens de Grande-Jon atravessaram a multidão com Lorde Rickard Karstark, ainda de mãos atadas. Seus homens já pendiam das grandes muralhas de Correrrio, balançando na ponta de longas cordas enquanto a chuva lhes lavava o rosto que enegrecia. Lew Longo esperava ao lado do cepo, mas Robb tirou o machado de sua mão e ordenou-lhe que se afastasse. - Isso é tarefa minha - disse. - Ele morre por ordem minha. Deve morrer por minhas mãos. Lorde Rickard Karstark inclinou rigidamente a cabeça. - Por isso lhe agradeço. Mas por mais nada. - Vestira-se para a morte com uma longa túnica negra de lã, decorada com o resplendor branco de sua Casa. - O sangue dos Primeiros Homens corre tanto nas minhas veias quanto nas suas, rapaz. Faria bem em se lembrar disso. Fui batizado em honra de seu avô. Convoquei meus vassalos contra o Rei Aerys por seu pai, e contra o Rei Joffrey por você. Em Cruzaboi, no Bosque dos Murmúrios e na Batalha dos Acampamentos cavalguei ao seu lado, e acompanhei Lorde Eddard no Tridente, Somos parentes, os Stark e os Karstark. - Esse parentesco não o impediu de me trair - disse Robb. - E não o salvará agora. Ajoelhe-se, senhor. Catelyn sabia que Lorde Karstark falara a verdade. Os Karstark traçavam sua genea- logia até Karlon Stark, um filho mais novo de Winterfell que derrubou um senhor rebelde mil anos antes e a quem tinham sido concedidas terras por seu valor, O castelo que construíra fora chamado Karls Hold, mas logo transformou-se em Karhold, e, ao longo dos séculos, os Stark de Karhold foram se transformando em Karstark. - Segundo os deuses antigos ou modernos, não faz diferença - Lorde Rickard disse ao filho dela -, não há homem mais amaldiçoado do que aquele que mata parentes. - Ajoelhe-se, traidor - voltou a dizer Robb. - Ou terei de ordenar-lhes que empurrem a sua cabeça contra o cepo? Lorde Karstark se ajoelhou. - Os deuses vão julgá-lo, tal como você me julgou, - Deitou a cabeça no cepo. - Rickard Karstark, Senhor de Karhold. - Robb ergueu o pesado machado com ambas as mãos. - Aqui, à vista dos deuses e dos homens, considero-o culpado de assassinato e alta traição. Em meu nome o condeno. Com as minhas mãos tiro a sua vida, Quer dizer uma última palavra? - Mate-me, e que seja amaldiçoado. Não é o meu rei.
O machado caiu. Pesado e bem afiado, matou em um único golpe, mas foram precisos três para separar a cabeça do corpo, e quando tudo terminou, tanto os vivos como o morto estavam encharcados de sangue. Robb atirou o machado ao chão, enojado, e virou-se para a árvore-coração sem dizer uma palavra. E ali ficou, tremendo e com as mãos se- micerradas e a chuva correndo por seu rosto. Que os deuses o perdoem, rezou Catelyn em silêncio. Ele é só um rapaz, e não tinha alternativa. Não voltou a ver o filho naquele dia. A chuva prosseguiu ao longo de toda a manhã, açoitando a superfície dos rios e transformando a relva do bosque sagrado em lama e poças. Peixe Negro reuniu uma centena de homens e saiu em busca de Karstarks, mas ninguém esperava que trouxesse muitos de volta. -Só rezo para não ter de enforcá-los - disse ao partir, Quando foi embora, Catelyn retirou-se para o aposento privado do pai, para sentar-se novamente à cabeceira de Lorde Hoster, - Não durará muito mais - preveniu-a Meistre Vyman quando apareceu naquela tarde. - Suas últimas forças estão se esgotando, embora ainda tente lutar. - Sempre foi um lutador - disse ela. - Um homem teimoso e querido. - Sim - disse o meistre -, mas esta é uma batalha que não pode ganhar. É hora de pousar a espada e o escudo. É hora de se render. De se render, pensou ela, de fazer a paz. O meistre estaria falando de seu pai ou de seu filho? Ao cair da noite, Jeyne Westerling veio visitá-la. A jovem rainha entrou timidamente no aposento privado. - Senhora Catelyn, não quero incomodá-la... - E muito bem-vinda aqui, Vossa Graça. - Catelyn estava bordando, mas pôs a agulha de lado. - Por favor. Chame-me de Jeyne. Não me sinto como uma Graça. - E, no entanto, é o que é. Por favor, venha sentar-se, Vossa Graça. -Jeyne, - Ela sentou-se junto à lareira e alisou ansiosamente a saia. - Como quiser. Como posso servi-la, Jeyne? - E Robb - disse a garota, - Ele está tão infeliz, tão... tão zangado e desconsolado. Não sei o que fazer. - Tirar a vida de um homem é uma coisa dura. - Eu sei. Disse-lhe que devia usar um carrasco, Quando Lorde Tywin envia um homem para a morte, tudo que faz é dar a ordem. Assim é mais fácil, não acha? - Sim - disse Catelyn -, mas o senhor meu esposo ensinou aos filhos que matar nunca deve ser fácil. - Oh. - A Rainha Jeyne umedeceu os lábios. - Robb não comeu o dia inteiro. Mandei que Rollam lhe levasse um bom jantar, costelas de javali
com cebolas cozidas e cerveja, mas nem tocou no prato. Passou a manhã inteira escrevendo uma carta e disse-me para não incomodá-lo, mas quando a carta ficou pronta, queimou-a. Agora está sentado, olhando uns mapas. Perguntei-lhe o que procurava, mas não me respondeu. Acho que nem sequer me ouviu. Nem quis mudar de roupa. Passou o dia inteiro molhado e ensangüentado. Eu quero ser uma boa esposa para ele, quero mesmo, mas não sei como ajudar. Não sei como animá-lo ou reconfortá-lo. Não sei de que precisa. Por favor, senhora, é a mãe dele, diga-me o que devo fazer. Diga-me o que devo fazer. Catelyn poderia fazer a mesma pergunta, se seu pai estivesse em condições de responder. Mas Lorde Hoster tinha partido, ou estava perto disso. O seu Ned também. E também Bran e Rickon, e a mãe, e Brandon, bá tanto tempo. Só lhe restava Robb, Robb e a esperança que se desvanecia de recuperar as filhas. - As vezes - disse Catelyn lentamente -, a melhor coisa que podemos fazer é nada. Quando cheguei a Winterfell, sentia-me magoada sempre que Ned ia ao bosque sagrado e lá se sentava sob a árvore-coração. Sabia que parte de sua alma estava naquela árvore, uma parte que eu nunca partilharia. Mas rapidamente percebi que sem essa parte ele não teria sido Ned. Jeyne, filha, você casou com o Norte, tal como eu fiz... e no Norte os invernos chegam. - Tentou sorrir. - Seja paciente. Seja compreensiva. Ele a ama e precisa de você, e voltará para você bem depressa. Talvez nesta mesma noite. Procure estar lá quando ele fizer isso. E tudo que posso lhe dizer. A jovem rainha escutou, arrebatada. ~ Estarei - disse, quando Catelyn terminou, - Estarei lá. - Pôs-se em pé. - Devia voltar. Ele pode ter sentido a minha falta. Verei. Mas se ainda estiver com os seus mapas, serei paciente, - Faça isso - disse Catelyn, mas quando a garota chegou à porta, lembrou-se de mais uma coisa, - Jeyne - chamou-a há algo mais que Robb precisa de você, embora ele próprio talvez não saiba ainda. Um rei precisa de um herdeiro. A garota sorriu ao ouvir aquilo. - Minha mãe diz o mesmo. Ela faz uma poção para mim, com ervas, leite e cerveja, para ajudar a me tornar fértil Bebo todas as manhãs. Disse a Robb que tenho certeza de que vou lhe dar gêmeos. Um Eddard e um Brandon. Ele gostou da idéia, acho eu. Nós... nós tentamos quase todos os dias, senhora. Certos dias duas vezes ou mais. - A garota corou de uma forma encantadora. - Vou esperar um bebê em breve, prometo. Rezo à nossa Mãe no Céu todas as noites. - Muito bem. Juntarei também as minhas preces. Aos velhos deuses e aos novos.
Depois que a garota saiu, Catelyn voltou para junto do pai e alisou os finos cabelos brancos por cima da testa. - Um Eddard e um Brandon - suspirou em voz baixa. - E talvez, a seu tempo, um Hoster. Gostaria disso? - ele não respondeu, mas ela nunca tinha esperado que respondesse. Enquanto o som da chuva no telhado se misturava com a respiração do pai, pensou em Jeyne. A garota realmente parecia ter bom coração, como Robb dissera. E boas ancas, o que pode vir a ser mais importante.

Tyrion

A corrente de mãos de Lorde Tywin projetava uma cintilação dourada sobre o profundo tom bordo de sua túnica de veludo. Os Senhores Tyrell, Redwyne e Rowan reuniram-se à sua volta quando ele entrou. Cumprimentou-os um por um, deu uma palavrinha em voz baixa a Varys, beijou o anel do Alto Septão e a face de Cersei, apertou a mão do Grande Meistre Pycelle e sentou-se no lugar do rei, à cabeceira da longa mesa, entre a filha e o irmão. Tyrion tinha se apoderado do antigo lugar de Pycelle, ao fundo da mesa, tendo-lhe acrescentado almofadas para poder estender o olhar ao longo de toda a mesa. Desalojado, Pycelle se mudara para junto de Cersei, sentando-se quase tão longe do anão quanto podia sem reclamar a cadeira do rei. O Grande Meistre era um esqueleto trôpego, apoiando-se pesadamente numa bengala retorcida e tremendo ao caminhar, com um punhado de cabelos brancos brotando de seu longo pescoço enrugado onde outrora tivera a sua luxuriante barba branca. Tyrion fitou-o sem remorso. Os outros tiveram de disputar os lugares: Lorde Mace Tyrell, um homem pesado e robusto, com cabelos castanhos encaracolados e uma barba em forma de folha bem salpicada de branco; Paxter Redwyne, da Árvore, de ombros estreitos e magro, com a cabeça calva rodeada de tufos de cabelo cor de laranja; Mathis Rowan, Senhor de Bosquedouro, escanhoado, entroncado e transpirando; o Alto Septão, um homem frágil, com uma bar- bicha fina e branca. Muitos rostos desconhecidos, pensou Tyrion, muitos jogadores novos. 0 jogo mudou enquanto eu apodrecia na cama, e ninguém vai me contar as regras, Oh, os lordes tinham sido bastante corteses, embora Tyrion visse como se sentiam desconfortáveis ao olhar para ele. - Aquela sua corrente, isso foi astucioso - tinha dito Mace Tyrell, num tom alegre, e Lorde Redwyne assentiu e completou: - E bem verdade, é bem verdade, o nosso senhor de Jardim de Cima fala por todos nós - também com grande alegria. Vá dizer isso ao povo desta cidade, pensou Tyrion amargamente. Vá dizer isso aos malditos cantores que andam por aí, com suas canções sobre o fantasma de Renly. Tio Kevan fora o mais caloroso, chegando ao ponto de lhe dar um beijo na face e dizer: - Lancei contou-me de sua bravura, Tyrion. Fala muito bem de você.
É melhor que fale, caso contrário eu teria algumas coisas a dizer sobre ele. Tinha se obrigado a sorrir e respondeu: - Meu bom primo é demasiado gentil. Confio que seu ferimento esteja cicatrizando, certo? Sor Kevan franziu a testa. - Um dia parece mais forte, no seguinte... é preocupante. Sua irmã vai com freqüência visitá-lo à cama, para melhorar seu moral e rezar por ele. Mas estará rezando para que sobreviva ou para que morra? Cersei usara desavergonhadamente o primo, na cama e fora dela; um pequeno segredo que sem dúvida esperava que Lancei levasse para a tumba, agora que o pai estava ali e já não precisava dele. Mas chegaria ao ponto de assassiná-lo? Ao vê-la hoje, nunca se suspeitaria de que Cersei era capaz de ser assim tão implacável. Ela era toda encanto, flertando com Lorde Tyrell enquanto conversavam sobre o banquete de casamento de Joffrey, elogiando Lorde Redwyne pelo valor de seus gêmeos, amaciando o rude Lorde Rowan com gracejos e sorrisos, dirigindo ruídos piedosos ao Alto Septão. - Começamos pelos preparativos para o casamento? - ela perguntou, quando Lorde Tywin se sentou. - Não - disse o pai. - Pela guerra. Varys. O eunuco deu um sorriso de seda. - Tenho notícias deliciosas para todos os senhores. Ontem de madrugada, o nosso bravo Lorde Randyll apanhou Robett Glover nos arredores de Valdocaso e encurralou- -o contra o mar. As perdas foram pesadas de ambos os lados, mas no fim os nossos leais homens prevaleceram. Dizem que Sor Helman Tallhart está morto, bem como mais de mil homens. Robett Glover volta a Harrenhal com os sobreviventes, em sangrenta desordem, sem sonhar que irá encontrar atravessados no caminho o valente Sor Gregor e seus bravos, - Que os deuses sejam louvados! - disse Paxter Redwyne. - Uma grande vitória para o Rei Joffrey! O que Joffrey teve a ver com isso?, pensou Tyrion. - E uma terrível derrota para o Norte, certamente - observou Mindinho mas uma derrota em que Robb Stark não desempenhou nenhum papel. O Jovem Lobo permanece invencível no campo de batalha, - O que sabemos dos planos e movimentos dos Stark? - perguntou Mathis Rowan, sempre direto e sem rodeios. - Correu de volta a Correrrio com o saque, abandonando os castelos que tomou no oeste - anunciou Lorde Tywin. - Nosso primo, Sor Daven, está reorganizando os restos do exército de seu falecido pai em Lanisporto. Quando estiverem preparados, vai se juntar a Sor Forley
Prester no Dente Dourado. Assim que o rapaz Stark marchar para norte, Sor Forley e Sor Daven cairão sobre Correrrio. - Está certo de que Lorde Stark pretende ir para o Norte? - perguntou Lorde Rowan. - Mesmo com os homens de ferro em Fosso Cailin? Mace Tyrell interveio. - Haverá alguma coisa mais inútil do que um rei sem reino? Não, é evidente, o rapaz tem de abandonar as terras fluviais, voltar a juntar suas forças às de Roose Bolton e a atirar todo o seu poderio contra Fosso Cailin. Seria isso que eu faria. Tyrion teve de morder a língua ao ouvir aquilo. Robb Stark vencera mais batalhas em um ano do que o Senhor de Jardim de Cima em vinte. A reputação de Tyrell se baseava em uma vitória não decisiva sobre Robert Baratheon em Vaufreixo, numa batalha praticamente ganha pela vanguarda de Lorde Tarly, antes mesmo de a tropa principal chegar. O cerco de Ponta Tempestade, onde Mace Tyrell realmente detinha o comando, arrastara-se durante um ano sem qualquer resultado, e após a batalha no Tridente, o Senhor de Jardim de Cima tinha saudado docilmente Eddard Stark com seus estandartes. - Devia escrever a Robb Stark uma carta severa - disse Mindinho. - Ouvi dizer que o seu subordinado Bolton anda guardando cabras no meu salão de audiências, é realmente uma grande falta de escrúpulos. Sor Kevan Lannister pigarreou. - No que diz respeito aos Stark... Balon Greyjoy, que agora se intitula Rei das Ilhas e do Norte, escreveu-nos oferecendo termos para uma aliança. - O que devia oferecer era fidelidade - exclamou Cersei. - Com que direito se intitula rei? - Com o direito da conquista - disse Lorde Tywin. - O Rei Balon tem dedos de estrangulador apertados em volta do Gargalo. Os herdeiros de Robb Stark estão mortos, Winterfell caiu e os homens de ferro detêm Fosso Cailin, Bosque Profundo e a maior parte da Costa Pedregosa. Os dracares do Rei Balon controlam o mar de poente e estão em boa posição para ameaçar Lanisporto, Ilha Bela e até Jardim de Cima, se o provocarmos. - E se aceitarmos essa aliança? - inquiriu Lorde Mathis Rowan. - Que termos ele propõe? - Que reconheçamos a sua condição régia e lhe demos tudo a norte do Gargalo. Lorde Redwyne soltou uma gargalhada. - O que há a norte do Gargalo que um homem são possa querer? Se o Greyjoy quiser trocar espadas e velas por pedras e neve, eu digo que devemos ir em frente e nos achar com sorte.
- E verdade - concordou Mace Tyrell. - Isso é o que eu faria. Que o Rei Balon acabe com os nortenhos enquanto nós acabamos com Stannis. O rosto de Lorde Tywin não mostrava nenhum sinal do que sentia. - Também é preciso lidar com Lysa Arryn, Viúva de Jon Arryn, filha de Hoster Tully, irmã de Catelyn Stark... cujo marido andava conspirando com Stannis Baratheon no momento de sua morte. - Ah - disse Mace Tyrell em voz alegre -, as mulheres não têm estômago para a guerra. Que seja deixada em paz, penso eu, não é provável que nos cause problemas. - Concordo - disse Redwyne. - A Senhora Lysa não participou na luta e tampouco cometeu qualquer ato claro de traição. Tyrion mexeu-se na cadeira, - Ela atirou-me numa cela e levou a minha vida a julgamento - apontou, com certa quantidade de rancor, - E não voltou a Porto Real para jurar lealdade a JoíFcomo lhe foi ordenado. Senhores, deem-me homens suficientes e eu tratarei de Lysa Arryn. - Não conseguia lembrar-se de nada que pudesse lhe dar mais prazer, exceto talvez estrangular Cersei. Às vezes ainda sonhava com as celas do céu do Ninho da Águia e acordava ensopado em suores frios. O sorriso de Mace Tyrell era jovial, mas por trás dele Tyrion detectou desprezo. - Talvez seja melhor que deixe a guerra para os guerreiros - disse o Senhor de jardim de Cima. - Homens melhores do que você perderam grandes exércitos nas Montanhas da Lua, ou estilhaçaram-nos contra o Portão Sangrento. Conhecemos seu valor, senhor, não há necessidade de tentar a sorte. Tyrion ergueu-se nas almofadas, irritado, mas o pai falou antes que tivesse oportunidade de reagir. - Tenho em mente outras tarefas para Tyrion. Creio que Lorde Petyr pode deter a chave para o Ninho da Águia. - Oh, se tenho - disse Mindinho -, tenho-a aqui bem entre as pernas. - Havia tra- vessura em seus olhos cinza-esverdeados. - Senhores, com a sua licença, proponho-me a viajar até o Vale e lá cortejar e conquistar a Senhora Lysa Arryn. Assim que me tornar seu consorte, entregarei o Vale de Arryn aos senhores, sem que seja derramada uma gota de sangue. Lorde Rowan demonstrou um ar de dúvida. - Mas a Senhora Arryn vai querer aceitá-lo? -Já me aceitou várias vezes antes, Lorde Mathis, e não exprimiu nenhuma queixa. - Dormir com alguém - disse Cersei - não é o mesmo que casar-se com tal pessoa. Até uma anta como a Lysa Arryn será capaz de compreender a diferença.
- Com certeza. Não seria próprio para uma filha de Correrrio casar com alguém tão abaixo de seu estatuto. - Mindinho abriu as mãos. - Mas agora... um casamento entre a Senhora do Ninho da Águia e o Senhor de Harrenhal não é assim tão impensável, não é? Tyrion reparou no olhar que foi trocado entre Paxter Redwyne e Mace Tyrell. - Talvez sirva - disse Lorde Rowan -, se tem a certeza de ser capaz de manter a mulher leal à Graça do Rei. - Senhores - proclamou o Alto Septão o outono está aí, e todos os homens de bom coração se sentem cansados da guerra. Se Lorde Baelish for capaz de trazer o Vale à paz do rei sem mais derramamento de sangue, os deuses certamente o abençoarão. - Mas será que ele é capaz de tal coisa? - perguntou Lorde Redwyne. - O Senhor do Ninho da Águia é agora o filho de Jon Arryn, Lorde Robert, - Não passa de um garoto - disse Mindinho, - Vou me assegurar de que cresça como o mais leal dos súditos de Joffrey, e um firme amigo de todos nós. Tyrion estudou o homem esbelto com barba pontiaguda e irreverentes olhos cinza- -esverdeados. Senhor de Harrenhal, uma honraria vazia? O raio que o parta, pai Mesmo que nunca ponha os pés no castelo, o titulo torna esse casamento possível, tal como ele sempre soube. - Não nos faltam inimigos - disse Sor Kevan Lannister. - Se o Ninho da Águia puder ser mantido fora da guerra, ótimo, Estou disposto a ver o que Lorde Petyr será capaz de alcançar. Tyrion sabia, por longa experiência, que Sor Kevan era a vanguarda do pai nos conselhos; nunca tinha um pensamento que antes não tivesse passado pela cabeça de Lorde Tywin. Tudo já foi combinado com antecedência, concluiu, e esta discussão não passa de um espetáculo. As ovelhas baliam o seu acordo, sem se darem conta da limpeza com que tinham sido tosquiadas, por isso, coube a Tyrion levantar objeções. - Como a coroa pagará as suas dívidas sem Lorde Petyr? Ele é o nosso mago da moeda, e não temos ninguém que o substitua. Mindinho sorriu. - Meu pequeno amigo é gentil demais. Tudo que faço é contar cobres, como o Rei Robert costumava dizer. Qualquer mercador inteligente poderia se sair igualmente bem... e um Lannister, abençoado com o toque de ouro de Rochedo Casterly, irá sem dúvida ultrapassar-me em muito. - Um Lannister? - aquilo deu a Tyrion um mau pressentimento. Os olhos salpicados de ouro de Lorde Tywin encontraram-se com os olhos desiguais do filho. - E admiravelmente adequado para a tarefa, creio eu.
- Deveras! - disse cordialmente Sor Kevan. - Nào tenho dúvidas de que será um magnífico mestre da moeda, Tyrion. Lorde Tywin virou-se de novo para Mindinho. - Se Lysa Arryn recebê-lo como esposo e regressar à paz do rei, devolveremos a Robert o título de Protetor do Leste. Quando pode partir? - Amanhã, se os ventos permitirem. Há uma galé de Bravos ao largo, para lá da corrente, embarcando carga por intermédio de barcos. O Rei Bacalhau. Falarei com o seu capitão a propósito de uma cabine. - Faltará ao casamento do rei - disse Mace Tyrell. Petyr Baelish encolheu os ombros. - As marés e as noivas não esperam por ninguém, senhor. Assim que se iniciem as tempestades de outono, a viagem vai se tornar muito mais perigosa. O afogamento certamente diminuiria meus encantos como noivo. Lorde Tyrell soltou um risinho. - E verdade. E melhor que não se demore. - Que os deuses o acompanhem em sua viagem - disse o Alto Septão. - Todos em Porto Real rezarão por seu sucesso. Lorde Redwyne apertou o nariz. - Podemos voltar ao problema da aliança Greyjoy? A meu ver, há muito a ser dito em seu favor. Os dracares Greyjoy reforçarão a minha frota e vão nos dar força suficiente no mar para assaltar Pedra do Dragão e pôr fim às pretensões de Stannis Baratheon. - Os dracares do Rei Balon no momento estão ocupados - disse educadamente Lorde Tywin assim como nós. Greyjoy exige metade do reino como preço por uma aliança, mas o que fará para merecê-lo? Lutar contra os Stark? já está fazendo isso. Por que havemos de pagar por aquilo que nos deu de graça? A melhor coisa a fazer a respeito de nosso senhor de Pyke é nada, a meu ver. Com tempo suficiente, uma alter- nativa melhor poderá se apresentar. Uma alternativa que não exija que o rei abra mão de metade de seu reino. Tyrion observou o pai com atenção. Há alguma coisa que ele não está dizendo. Lembrou-se daquelas cartas importantes que Lorde Tywin estava escrevendo na noite em que Tyrion exigiu Rochedo Casterly. O que foi que ele disse? Algumas batalhas ganham- se com espadas e lanças, outras com penas e corvos... Perguntou a si mesmo quem seria a "melhor alternativa", e que tipo de preço estaria exigindo. - Talvez devêssemos passar ao casamento - disse Sor Kevan. O Alto Septão falou dos preparativos que estavam sendo feitos no Grande Septo de Baelor, e Cersei detalhou os planos que tinha feito para o banquete. Iriam ter mil convi- ciados na sala do trono, mas muitos mais lá fora, nos pátios. Os pátios exterior e intermediário seriam
cobertos por toldos de seda, com mesas de comida e barris de cerveja para todos os que não pudessem ser acomodados no salão. - Vossa Graça - disse o Grande Meistre Pycelle em relação ao número de convidados... recebemos um corvo de Lançassolar. Trezentos dorneses vêm a caminho de Porto Real neste exato momento e esperam chegar antes da boda. - Vêm como? - perguntou bruscamente Mace Tyrell. - Não pediram autorização para atravessar as minhas terras. - Tyrion reparou que seu grosso pescoço havia se tornado vermelho-escuro. Dorneses e o povo de Jardim de Cima nunca tinham tido grande simpatia uns pelos outros; ao longo dos séculos, tinham travado incontáveis guerras fronteiriças, além de desencadearem ataques para lá e para cá, atravessando montanhas e campinas, mesmo em tempo de paz. A inimizade atenuara-se um pouco depois de Dorne ter se tornado parte dos Sete Reinos... até que o príncipe dornês que chamavam de Víbora Vermelha aleijou o jovem herdeiro de Jardim de Cima num torneio. Isso pode vir a ser constrangedor, pensou o anão, esperando para ver como o pai lidaria com o assunto. - O Príncipe Doran vem a convite de meu filho - disse calmamente Lorde Tywin não só para se juntar à nossa festa, mas também para reclamar seu lugar neste conselho e a justiça que Robert lhe negou pelo assassinato da irmã Elia e de seus filhos. Tyrion observou o rosto de Lorde Tyrell, de Redwyne e de Rowan, perguntando a si mesmo se algum dos três seria suficientemente ousado para dizer "Mas, Lorde Tywin, não foi você quem apresentou os corpos a Robert, enrolados em mantos Lannister?". Nenhum deles fez isso, mas a pergunta estava lá, em suas expressões, mesmo assim. Redwyne não está nem aí, pensou, mas Rowan parece pronto para vomitar. - Quando o rei estiver casado com a sua Margaery e Myrcella com o Príncipe Tristane, seremos todos uma grande Casa - recordou Sor Kevan a Mace Tyrell. - As inimizades do passado devem permanecer no passado, não concorda, senhor? - Este é o casamento da minha filha... - ... e do meu neto - disse firmemente Lorde Tywin. - Certamente não será o lugar adequado para velhas rixas. - Não tenho nenhuma rixa com Doran Martell - insistiu Lorde Tyrell, embora seu tom de voz fosse mais do que um pouco ríspido. - Se deseja atravessar a Campina em paz, só precisa pedir a minha autorização. Isso é pouco provável, pensou Tyrion. Ele vai subir o caminho do espinhaço, virar para leste perto de Solarestival, e seguir pela estrada do rei. - Trezentos dorneses não irão perturbar os nossos planos - disse Cersei. - Podemos colocar os homens de armas no pátio, enfiar mais
alguns bancos na sala do trono para os fidalgos e cavaleiros de bom nascimento e arranjar para o Príncipe Doran um lugar de honra no estrado. Perto de mim, não, era a mensagem que Tyrion lia nos olhos de Mace Tyrell, mas o Senhor de Jardim de Cima limitou-se a responder com um aceno brusco. - Talvez possamos passar a uma tarefa mais agradável - disse Lorde Tywin. - Os frutos da vitória aguardam divisão. - O que poderia ser mais animador? - perguntou Mindinho, que já havia engolido seu fruto, Harrenhal. Cada senhor tinha as suas exigências; este castelo e aquela aldeia, extensões de terra, um pequeno rio, uma floresta, a tutela de certos menores deixados sem pai pela batalha. Felizmente, os frutos eram abundantes, e havia órfãos e castelos para todos. Varys tinha listas. Quarenta e sete fidalgos menores e seiscentos e dezenove cavaleiros tinham perdido a vida sob o coração flamejante de Stannis e de seu Senhor da Luz, bem como vários milhares de homens de armas plebeus. Todos eles traidores, seus herdeiros eram deserdados, suas terras e castelos oferecidos àqueles que tinham se mostrado mais leais. Jardim de Cima teve a colheita mais rica. Tyrion olhou a grande barriga de Mace Tyrell e pensou: Esse aí tem um apetite prodigioso. Tyrell exigiu as terras e castelos de Lorde Alester Florent, seu próprio vassalo, que tivera o singular mau discernimento de apoiar primeiro Renly e depois Stannis. Lorde Tywin fez sua vontade com toda a satisfação. A Fortaleza de Águas Claras e todas as suas terras e rendimentos foram oferecidos ao segundo filho de Lorde Tyrell, Sor Garlan, transformando-o num grande senhor num piscar de olhos. O irmão mais velho, naturalmente, estava na linha para herdar o próprio Jardim de Cima, Extensões menores de terra foram oferecidas a Lorde Rowan e separadas para Lorde Tarly, Senhora Oakheart, Lorde Hightower e outros ilustres que não se encontravam presentes. Lorde Redwyne pediu apenas trinta anos de perdão nos impostos que Mindinho e seus feitores vinícolas tinham feito cair sobre certos dos melhores vinhos da Árvore, Quando isso lhe foi concedido, declarou-se plenamente satisfeito e sugeriu que mandassem vir um casco de vinho dourado da Árvore, a fim de brindar ao Rei Joffrey e à sua sábia e benevolente Mão. Ao ouvir aquilo, Cersei perdeu a paciência. - E de espadas que Joff precisa, não de brindes - exclamou. - Seu reino continua empesteado de candidatos a usurpadores e autoproclamados reis. - Mas não por muito tempo, penso eu - disse untuosamente Varys. - Ainda restam alguns assuntos, senhores. - Sor Kevan consultou seus papéis. - Sor Addam encontrou alguns dos cristais da coroa do Alto
Septão. Agora parece certo que os ladrões separaram os cristais e fundiram o ouro. - Nosso pai no Céu conhece a culpa deles e vai levá-los todos a julgamento - disse piamente o Alto Septão. - Sem dúvida que sim - disse Lorde Tywin. - Seja como for, você deve estar coroado na boda do rei. Cersei, convoque nossos ourives, temos de arranjar uma coroa que a substitua. - Não esperou pela resposta dela e virou-se imediatamente para Varys. - Tem relatórios? O eunuco tirou um pergaminho da manga. - Foi vista uma lula-gigante ao largo dos Dedos. - Soltou um risinho. - Não um Greyjoy, notem, uma lula-gigante de verdade. Atacou um baleeiro ibbenês e afundou-o. Luta-se nos Degraus, e uma nova guerra entre Tyrosh e Lys parece provável. Ambas as cidades têm esperança de ganhar Myr como aliada. Marinheiros vindos do Mar de Jade relatam que um dragão de três cabeças nasceu em Qarth e é a maravilha dessa cidade... - Dragões e lulas-gigantes não me interessam, independentemente de quantas cabeças tenham - disse Lorde Tywin. - Seus informantes terão por acaso encontrado algum rastro do filho de meu irmão? - Infelizmente, nosso bem-amado Tyrek desapareceu por completo, pobre e bravo rapaz. - Varys parecia perto de rebentar em lágrimas. - Tywin - disse Sor Kevan, antes que Lorde Tywin tivesse oportunidade de expressar a sua óbvia insatisfação alguns dos homens de manto dourado que desertaram durante a batalha esgueiraram-se de volta aos quartéis, pensando retornar ao serviço. Sor Addam quer saber o que fazer com eles. - Podem ter posto Joff em perigo com sua covardia - disse imediatamente Cersei. - Quero-os executados, Varys suspirou. - Eles certamente mereceriam a morte, Vossa Graça, ninguém pode negar, E, no entanto, talvez fosse mais sensato se os mandássemos para a Patrulha da Noite. Nos últimos tempos, recebemos mensagens perturbadoras da Muralha. Sobre selvagens em movimento... - Selvagens, lulas-gigantes e dragões, - Mace Tyrell soltou um risinho. - Ora essa, haverá alguém que não se agita? Lorde Tywin ignorou-o. - Os desertores servem-nos melhor como lição. Quebrem seus joelhos com martelos. Não voltarão a fugir. Assim como qualquer homem que os veja mendigando pelas ruas, - Passou o olhar pela mesa, para ver se algum dos outros senhores discordava. Tyrion lembrou-se de sua visita à Muralha, e dos caranguejos que tinha dividido com o velho Lorde Mormont e seus oficiais. Lembrou-se também dos temores do Velho Urso,
- Talvez possamos quebrar os joelhos de alguns para afirmar nossa posição. Aqueles que mataram Sor Jacelyn, por exemplo. Quanto aos outros, podemos mandá-los para o Marsh. A Patrulha está com uma grave falta de efetivos. Se a Muralha cair... - ... os selvagens inundarão o Norte - concluiu o pai - e os Stark e os Greyjoy terão outro inimigo para combater, Se, como parece, já não desejam ser súditos do Trono de Ferro, com que direito olham para ele em busca de ajuda? Tanto o Rei Robb como o Rei Balon reivindicam o Norte. Que eles o defendam, se conseguirem. E, se não conseguirem, esse Mance Rayder até pode se revelar um aliado útil. - Lorde Tywin olhou para o irmão. - Mais alguma coisa? Sor Kevan sacudiu a cabeça, - Terminamos, Senhores, Sua Graça, o Rei Joffrey, desejará sem dúvida agradecer a todos por sua sabedoria e bons conselhos. - Gostaria de trocar umas palavras em privado com meus filhos - disse Lorde Tywin quando os outros se levantaram para sair da sala. - Você também, Kevan. Obedientemente, os outros conselheiros fizeram as suas despedidas. Varys foi o primeiro a sair e Tyrell e Redwyne, os últimos. Quando todos exceto os quatro Lannister tinham saído da sala, Sor Kevan fechou a porta. - Mestre da moeda? - perguntou Tyrion numa voz fina e tensa. - De quem foi essa idéia, diga-me? - De Lorde Petyr - disse o pai -, mas é útil ter o tesouro nas mãos de um Lannister. Você pediu um trabalho importante. Teme ser incapaz de desempenhar a tarefa? - Não - disse Tyrion. - Tenho medo de uma armadilha. Mindinho é sutil e ambicioso. Não confio nele. E o senhor também não deveria confiar. - Ele conquistou Jardim de Cima para o nosso lado... - começou Cersei. - ... e vendeu-lhe Ned Stark, eu sei. Vai nos vender com a mesma rapidez. Nas mãos erradas, uma moeda é tão perigosa quanto uma espada. Tio Kevan olhou-o com uma expressão estranha. - Decerto que não para nós. O ouro de Rochedo Casterly... - ... é escavado do chão. O ouro de Mindinho é feito a partir do ar, com um estalar de dedos. - Uma habilidade mais útil do que qualquer uma das suas, querido irmão - ronro- nou Cersei, numa doce voz de malícia. - Mindinho é um mentiroso... - ... e também é preto, disse a gralha sobre o corvo. Lorde Tywin bateu na mesa. - Basta! Não admito mais essa briguinha indecorosa. São ambos Lannister e vão se comportar como tal.
Sor Kevan pigarreou. - Eu preferiria ter Petyr Baelish governando o Ninho da Águia do que qualquer outro dos pretendentes da Senhora Lysa. Yohn Royce, Lyn Corbray, Horton Redfort... são homens perigosos, cada um à sua maneira. E orgulhosos. Mindinho pode ser esperto, mas não tem nem nascimento elevado nem perícia com as armas. Os Senhores do Vale nunca aceitarão um homem assim como seu suserano. - Olhou para o irmão. Quando Lorde Tywin acenou com a cabeça, prosseguiu. - E há o seguinte: Lorde Petyr continua a demonstrar sua lealdade. Ontem mesmo trouxe-nos a notícia de um estratagema dos Tyrell para levar Sansa Stark até Jardim de Cima para uma "visita", e lá casá-la com o filho mais velho de Lorde Mace, Willas. - Mindinho trouxe-lhe essa notícia? - Tyrion debruçou-se sobre a mesa. - Não foi o nosso mestre dos sussurros? Que interessante, Cersei olhou o tio com incredulidade. - Sansa é minha refém. Ela não vai a lugar nenhum sem a minha licença. - Licença que forçosamente teria que dar, se Lorde Tyrell a pedisse - ressaltou o pai. - Recusá-la seria equivalente a declarar que não confiamos nele. Ele iria se ofender. - Que se ofenda. E daí? Maldita idiota, pensou Tyrion. - Querida irmã - explicou pacientemente se ofender os Tyrell, ofenderá também os Redwyne, os Tarly, os Rowan e os Hightower, e talvez os faça começar a pensar se Robb Stark não poderia ser mais obsequioso para com os seus desejos. - Não quero a rosa e o lobo gigante juntos na cama - declarou Lorde Tywin. - Temos de nos antecipar. - Como? - perguntou Cersei, - Através do casamento. O seu, para começar. Aquilo foi tão súbito que Cersei não conseguiu fazer mais do que fitá-lo por um momento. Então, seu rosto enrubesceu como se tivesse sido esbofeteado. - Não. Outra vez, não. Não farei isso. - Vossa Graça - disse Sor Kevan com cortesia -, é uma mulher jovem, ainda bela e fértil. Certamente não vai querer passar o resto de seus dias sozinha. E um novo casamento afastará de uma vez por todas essa história de incesto. - Enquanto permanecer sem casar, estará permitindo que Stannis espalhe essa repugnante difamação - disse Lorde Tywin à filha. - Precisa ter um novo marido em sua cama, para lhe gerar filhos. - Três filhos são mais do que suficientes. Sou Rainha dos Sete Reinos, não uma égua reprodutora! A Rainha Regentel
- E minha filha, e fará o que eu ordenar. Ela pôs-se em pé. - Não ficarei aqui ouvindo essa... - Ficará se quiser dizer algo sobre a escolha de seu próximo marido - disse calmamente Lorde Tywin. Ela hesitou e depois se sentou, Tyrion compreendeu que ela tinha perdido, apesar de sua sonora declaração de que: - Não voltarei a me casar! - Vai se casar e se reproduzir. Cada filho que der à luz tornará Stannis mais mentiroso. - Os olhos do pai pareciam pregá-la à cadeira como se fossem alfinetes. - Mace Tyrell, Paxter Redwyne e Doran Martell são casados com mulheres mais jovens, que provavelmente sobreviverão a eles, A esposa de Balon Greyjoy é idosa e de saúde delicada, mas um casamento desses iria nos comprometer a uma aliança com as Ilhas de Ferro, e eu ainda não estou certo de que esse seja o caminho mais sensato. - Não - disse Cersei por entre os lábios brancos. - Não, não, não. Tyrion não conseguiu suprimir por completo o sorriso que veio aos seus lábios ao pensar em despachar a irmã para Pyke. Justamente quando eu me preparava para desistir das rezas, um deus bondoso entrega-me isto. Lorde Tywin prosseguiu. - Oberyn Martell poderia servir, mas os Tyrell levariam uma coisa dessas muito a mal. Portanto, temos que olhar para os filhos. Presumo que não levante objeções a se casar com um homem mais novo do que você. - Levanto objeções a casar com qualquer... - Pensei nos gêmeos Redwyne, em Theon Greyjoy, em Quentyn Martell e em vários outros. Mas a nossa aliança com Jardim de Cima foi a espada que quebrou Stannis. Deve ser temperada e fortalecida. Sor Loras envergou o branco e Sor Garlan está casado com uma das Fossoway, mas ainda resta o filho mais velho, o rapaz que planejam casar com Sansa Stark. Willas Tyrell. Tyrion estava tendo um prazer perverso com a fúria impotente de Cersei. - Esse é o aleijado - ele disse. O pai gelou-o com um olhar. - Willas é herdeiro de Jardim de Cima, e, segundo tudo que se diz, um jovem brando e cortês, apreciador da leitura e da observação das estrelas. Tem também uma paixão pela criação e seleção de cruzas de animais, possui os melhores cães de caça, falcões e cavalos dos Sete Reinos.
Um casamento perfeito, devaneou Tyrion. Cersei também tem uma paixão por cruzar. Sentiu pena do pobre Willas Tyrell, e não soube se devia rir da irmã ou chorar por ela. - O herdeiro Tyrell seria a minha escolha - concluiu Lorde Tywin -, mas se preferir outro, escutarei seus argumentos. - Isso é tão gentil de sua parte, pai - disse Cersei com fria cortesia. - A escolha que me deixa é tão complicada. Quem eu preferiria levar para a cama, a lula velha ou o cãozinho aleijado? Precisarei de alguns dias para pensar no assunto. Tenho a sua licença para me retirar? Você é a rainha, Tyrion quis lhe dizer. Ele devia estar pedindo licença a você. - Vá - disse o pai. - Voltaremos a conversar depois de ter recuperado a compostura. Lembre-se de seus deveres. Cersei caminhou, dura, para fora da sala, ostentando claramente a sua raiva. Mas no fim fará o que o pai pede. Ela provara isso com Robert. Se bem que haja Jaime a considerar. O irmão era muito mais novo quando Cersei se casou pela primeira vez; poderá não aceitar tão facilmente um segundo casamento. O infeliz Willas Tyrell corria o risco de contrair um súbito caso fatal de espada-através-das-entranhas, o que poderia amargar consideravelmente a aliança entre Jardim de Cima e Rochedo Casterly. Devia dizer alguma coisa, mas o quê? Perdoe-me, pai, mas é com o nosso irmão que ela quer se casar? - Tyrion. Deu um sorriso resignado. - Estarei ouvindo o arauto me chamar para a liça? - Seu gosto por prostitutas é uma fraqueza - disse Lorde Tywin sem preâmbulos mas talvez parte da culpa seja minha. Como não é mais alto do que um garoto, acostumei-me a esquecer que é realmente um adulto, com todas as necessidades básicas de um homem. Já é mais do que tempo de se casar. Eu já me casei, ou será que se esqueceu? A boca de Tyrion retorceu-se, e dela saiu um ruído que era meio gargalhada e meio rosnido. - A idéia de casamento o diverte? - Só de imaginar o noivo demoniacamente bonito que serei. - Uma esposa poderia ser exatamente aquilo de que precisava. Se lhe trouxesse terras e uma fortaleza, poderia providenciar-lhe um lugar no mundo afastado da corte de Joffrey... e de Cersei e do pai. Por outro lado, havia Shae. Ela não vai gostar disso, apesar de todas as juras sobre contentar-se em ser a minha prostituta. Mas isso não era propriamente um argumento que influenciasse o pai, por isso Tyrion retorceu-se mais para cima na cadeira e disse: - Você pretende me casar com Sansa Stark. Mas os Tyrell não irão considerar essa união uma afronta se tiverem planos para a garota?
- Lorde Tyrell não abordará o assunto da garota Stark até depois da boda de Joffrey. Se Sansa se casar antes disso, como poderá se ofender, se não nos deu nenhuma pista de suas intenções? - Precisamente - disse Sor Kevan -, e quaisquer ressentimentos que persistam deverão ser acalmados pela oferta de Cersei para o seu Willas. Tyrion esfregou os restos inflamados do nariz. A cicatriz às vezes coçava abominavel- mente. - Sua Graça, a real pústula, transformou a vida de Sansa num inferno desde o dia em que o pai dela morreu, e agora que está finalmente livre de Joffrey você propõe casá-la comigo. Isso parece extraordinariamente cruel, Até para o senhor, pai, - Por quê? Pretende tratá-la mal? - o pai parecia mais curioso do que preocupado, - Minhas intenções não incluem a felicidade da menina, e as suas também não deviam inclui-la. Nossas alianças no sul podem ser sólidas como o Rochedo Casterly, mas resta o norte por conquistar, e a chave para o norte é Sansa Stark. - Ela não passa de uma criança. - Sua irmã jura que já floresceu. Se assim for, é uma mulher em condições de se casar, Terá de deflorá-la para que ninguém possa dizer que o casamento não foi consumado. Depois disso, se preferir esperar um ano ou dois antes de voltar a dormir com ela, estará no seu direito de marido. Shae é toda a mulher de que preciso no momento, pensou, e Sansa é uma garota, diga o que disser. - Se a sua intenção com isso é afastá-la dos Tyrell, por que não a devolve à mãe? Isso talvez convencesse Robb Stark a dobrar o joelho. O olhar de Lorde Tywin era de escárnio. - Se a mandarmos para Correrrio, a mãe arranjará um casamento com um Blackwood ou um Mallister, para escorar as alianças do filho ao longo do Tridente. Se a mandarmos para norte, estará casada com algum Manderly ou Umber antes da volta da lua. Mas não é menos perigosa aqui na corte, como essa história com os Tyrell demonstra. Ela tem de se casar com um Lannister, e depressa. - O homem que casar com Sansa Stark pode reclamar Winterfell em seu nome - interveio tio Kevan. - Isso não lhe ocorreu? - Se não quiser a garota, podemos dá-la a um de seus primos - disse o pai. - Kevan, crê que Lancei está suficientemente forte para se casar? Sor Kevan hesitou. - Se levarmos a garota à sua cabeceira, deverá ser capaz de proferir as palavras... mas para a consumação, não... Eu sugeriria um dos gêmeos, mas os Stark detêm ambos em Correrrio. Também têm o filho de Genna, Tion, se for o caso, ele poderia servir.
Tyrion deixou-os desenvolver seu enredo secundário. Sabia que era tudo para ele ouvir. Sansa Stark, meditou. A Sansa de falinhas mansas e cheiros doces, que gostava de sedas, canções, cavalaria e cavaleiros altos e galantes com rostos bonitos. Sentia-se de volta à ponte do navio, com o convés se movendo debaixo de seus pés. - Você me pediu para recompensá-lo por seus atos na batalha - disse Lorde Tywin vivamente, - Isto é uma oportunidade para você, Tyrion, a melhor que provavelmente terá na vida. - Tamborilou impacientemente na mesa com os dedos, - Antigamente tive esperança de casar seu irmão com Lysa Tully, mas Aerys nomeou-o para a sua Guarda Real antes de os preparativos estarem concluídos. Quando sugeri ao Lorde Hoster que Lysa poderia se casar com você em vez de Jaime, ele respondeu que queria um homem inteiro para a filha. Portanto casou-a com Jon Arryn, que tinha idade para ser avô dela. Tyrion estava mais inclinado a sentir-se agradecido do que zangado, considerando aquilo em que Lysa Arryn se tornara. - Quando o ofereci a Dorne, foi-me dito que a sugestão era um insulto - prosseguiu Lorde Tywin, - Nos anos seguintes recebi respostas semelhantes de Yohn Royce e Leyton Hightower. Por fim, desci ao ponto de sugerir que poderia aceitar a moça Florent que Robert deflorou na cama de núpcias do irmão, mas o pai preferiu dá-la a um dos cavaleiros de sua guarnição. "Se não aceitar a garota Stark, vou arranjar outra esposa para você. Em algum lugar, no reino, haverá sem dúvida algum fidalgote que se separará de bom grado de uma filha para conquistar a amizade de Rochedo Casterly. A Senhora Tanda ofereceu Lollys..." Tyrion estremeceu de susto. - Preferiria cortá-lo e dá-lo de comer às cabras. - Então abra os olhos. A garota Stark é nova, núbil, afável, do melhor nascimento e ainda donzela. Não é feia. Por que haveria de hesitar? E por quê, realmente? - E só uma idiossincrasia minha. E estranho dizê-lo, mas preferiria uma esposa que me queira na sua cama. - Se acha que as suas rameiras querem você nas camas delas, é um idiota ainda maior do que eu suspeitava - disse Lorde Tywin. - Você me decepciona, Tyrion. Tinha esperança de que essa união lhe agradasse. - Sim, todos nós sabemos como meu agrado é importante para você, pai. Mas há mais coisas envolvidas nisso. A chave para o Norte, você diz? Agora quem controla o Norte são os Greyjoy, e o Rei Balon tem uma filha. Por que Sansa Stark, e não ela? - Olhou os olhos do pai, frios e verdes, com seus salpicos de ouro. Lorde Tywin uniu os dedos sob o queixo.
- Balon Greyjoy pensa em termos de saque, não de governo. Que aproveite um outono de coroa e agüente um inverno do norte. Não dará aos súditos motivo para gostar dele. Ao chegar a primavera, os nortenhos estarão fartos de lulas-gigantes. Quando levar o neto de Eddard Stark para casa, para reclamar o seu direito de nascença, tanto os senhores como o povo se erguerão juntos para instalá-lo no cadeirão de seus ancestrais. Você é capaz de engravidar uma mulher, espero eu? - Creio que sim - disse Tyrion, irritado. - Confesso que não posso provar. Embora ninguém possa dizer que não tentei. Ora, se planto as minhas sementinhas sempre que tenho oportunidade... - Nas fossas e nas sarjetas - concluiu Lorde Tywin - e em terreno plebeu, onde só ervas bastardas ganham raízes. Já é mais do que hora de manter seu próprio jardim. - Pôs-se em pé. - Nunca terá Rochedo Casterly, garanto. Mas case com Sansa Stark, e é possível que conquiste Winterfell. Tyrion Lannister, Senhor Protetor de Winterfell A idéia provocou-lhe um estranho arrepio. - Muito bem, pai - disse lentamente mas há uma questão que não estão considerando. Robb Stark é tão capaz quanto eu, presume-se, e está prometido a uma daquelas férteis Frey. E assim que o Jovem Lobo gerar uma ninhada, as crias que Sansa trouxer ao mundo não serão herdeiras de nada. Lorde Tywin não se mostrou preocupado, - Robb Stark não gerará nenhum filho nessa fértil Frey, tem a minha palavra quanto a isso. Há algumas notícias que não achei por bem partilhar com o conselho, embora os bons senhores irão sem dúvida saber delas em breve. O Jovem Lobo tomou a filha mais velha de Gawen Westerling como esposa. Por um momento, Tyrion não conseguiu acreditar que ouvira bem o que o pai dissera. - Ele quebrou a palavra? - disse, incrédulo. - Ele jogou fora os Frey por... - As palavras falharam-lhe. - Uma donzela de dezesseis anos, chamada Jeyne - disse Sor Kevan. - Lorde Gawen sugeriu-a uma vez para Willem ou Martyn, mas tive de recusar. Gawen é um bom homem, mas sua esposa é Sybell Spicer. Ele nunca devia ter se casado com ela. Os Westerling sempre tiveram mais honra do que bom senso. O avô da Senhora Sybell era um mercador de açafrão e pimenta, de um nascimento quase tão baixo quanto o daquele contrabandista de Stannis. E a avó era uma mulher qualquer que ele trouxe do leste. Uma velha assustadora, supostamente uma sacerdotisa. Chamavam-lhe Maegi. Ninguém conseguia pronunciar seu verdadeiro nome. Metade de Lanisporto ia até ela em busca de curas, poções de amor e coisas do gênero. - Encolheu os ombros. - Ela está
morta há muito tempo, é certo. E Jeyne parecia uma doce criança, admito, embora só a tenha visto uma vez. Mas com um sangue tão duvidoso... Tendo casado uma vez com uma prostituta, Tyrion não podia partilhar inteiramente do horror do tio à idéia de se casar com uma garota cujo bisavô vendia cravos. Mesmo assim... Uma doce criança, dissera Sor Kevan, mas muitos eram os venenos que também eram doces. Os Westerling eram de sangue antigo, mas possuíam mais orgulho do que poder. Não o surpreenderia se lhe dissessem que a Senhora Sybell trouxera mais riqueza ao casamento do que o seu esposo bem-nascido. As minas Westerling tinham se esgotado havia anos, suas melhores terras tinham sido vendidas ou perdidas, e o Despenha- deiro era mais ruína do que fortaleza. Uma ruína romântica, porém, projetando-se ousadamente sobre o mar, - Estou surpreso - Tyrion teve de confessar. - Julgava que Robb Stark tinha mais bom senso. - E um garoto de dezesseis anos - disse Lorde Tywin. - Nessa idade, o senso pouco pesa contra o desejo, o amor e a honra. - Ele quebrou um juramento, envergonhou um aliado, traiu uma promessa solene. Onde está a honra nisso? Foi Sor Kevan quem respondeu. - Ele colocou a honra da garota acima da sua. Depois de deflorá-la, não tinha alternativa. - Podia ter sido mais gentil deixá-la com um bastardo na barriga - disse Tyrion sem rodeios. Os Westerling arriscavam-se assim a perder tudo; as terras, o castelo, até a própria vida. Um Lannister sempre paga as suas dívidas. - Jeyne Westerling é filha de sua mãe - disse Lorde Tywin - e Robb Stark é filho de seu pai. Aquela traição Westerling não parecia ter enraivecido o pai tanto quanto Tyrion esperaria. Lorde Tywin não tolerava deslealdades por parte dos vassalos. Extinguira completamente os orgulhosos Reyne de Castamere e os antigos Tarbeck de Solar Tar- beck quando mal deixara de ser um rapaz. Os cantores tinham até feito uma canção bastante lúgubre sobre o assunto. Alguns anos mais tarde, quando Lorde Farman de Belcastro se tornou truculento, Lorde Tywin enviou um embaixador que levava um alaúde em vez de uma carta. Mas, depois de ouvir "As chuvas de Castamere" ecoando em seu salão, Lorde Farman deixou de causar problemas. E se a canção não bastasse, os castelos destruídos dos Reyne e dos Tarbeck ainda estavam lá, como testemunhos mudos do destino que esperava aqueles que escolhiam escarnecer do poder de Rochedo Casterly,
- O Despenhadeiro não é muito longe de Solar Tarbeck e Castamere - destacou Tyrion, - Seria esperado que os Westerling tivessem passado por esses locais e visto a lição que lá se encontra. - E talvez o tenham feito - disse Lorde Tyw in. — Garanto-lhe que estão bem cientes de Castamere. - Poderão os Westerling e Spicer ser tão idiotas que creem que o lobo pode derrotar o leão? Muito de vez em quando, Lorde Tywin Lannister chegava mesmo a ameaçar um sorriso; nunca o fazia, mas a simples ameaça era terrível de contemplar, - Os maiores idiotas são às vezes mais espertos do que os homens que deles riem - disse, e depois: - Casará com Sansa Stark, Tyrion. E em breve.

Sanwel

Soluçando, Sam deu mais um passo. Este é o último, o último de todos, não sou capaz de continuar, não sou capaz. Mas os pés voltaram a se mover. Um deles e depois o outro. Deu um passo, e depois outro, e ele pensou: Estes pés não são meus, são de outra pessoa, é outra pessoa que caminha, não posso ser eu. Quando olhou para baixo, viu-os tropeçando através da neve; coisas sem forma e desajeitadas. Parecia lembrar-se de que as botas tinham sido pretas, mas a neve formara uma crosta em volta delas, e agora eram disformes bolas brancas. Como dois pés deformados feitos de gelo, Não queria parar, a nevasca. Os montes de neve acumulada já lhe passavam dos joelhos, e uma crosta cobria a parte de baixo de suas pernas como um par de grevas brancas. Seus passos eram arrastados, deslizantes. A mochila pesada que levava fazia com que ele parecesse um monstruoso corcunda. E estava cansado, tão cansado. Não consigo continuar. Mãe, tenha piedade de mim, não consigo. A cada quatro ou cinco passos, tinha de baixar a mão e puxar para cima seu cinto da espada, Havia perdido a espada no Punho, mas a bainha ainda pesava no cinto. Possuía duas facas; o punhal de vidro de dragão que Jon lhe dera e o de aço com que cortava a carne. Todo esse peso sobrecarregava o cinto, e sua barriga era tão grande e redonda que, caso se esquecesse de puxá-lo, o cinto deslizaria até se enrolar em volta de seus tornozelos, por mais que o apertasse. Uma vez tentou afivelá-lo por cima da barriga, mas então chegou quase em suas axilas. Grenn quase tinha morrido de rir ao vê-lo, e Edd Doloroso disse: - Uma vez, conheci um homem que usava assim a espada, numa corrente em volta do pescoço. Um dia tropeçou, e o cabo entrou no nariz dele, O próprio Sam andava tropeçando. Havia pedras por baixo da neve, além de raízes de árvores e, às vezes, buracos profundos no chão gelado. Bernarr, o Negro, havia enfiado o pé em um e quebrado o tornozelo havia três dias, ou talvez quatro, ou... na verdade ele não sabia quanto tempo tinha se passado. O Senhor Comandante tinha colocado Bernarr num cavalo depois disso. Soluçando, Sam deu mais um passo. Sentia-se mais como se estivesse caindo do que andando, sempre caindo, mas sem nunca atingir o chão, apenas caindo para a frente e mais para a frente. Tenho de parar, dói
demais. Sinto tanto frio e estou tão cansado, tenho de dormir, só um pouco de sono junto a uma fogueira, e um pouco de comida que não esteja congelada. Mas se parasse, morreria. Sabia disso. Todos os poucos que restavam sabiam. Tinham sido cinqüenta quando fugiram do Punho, talvez mais, mas alguns haviam se perdido na neve, alguns dos feridos tinham sangrado até a morte... e, às vezes, Sam ouvia gritos atrás de si, vindos da retaguarda, e uma vez ouviu um berro horrível Quando ouviu aquilo, correu, vinte ou trinta metros, tanto e tão depressa como tinha sido capaz, levantando neve com os pés meio congelados. Ainda estaria correndo se suas pernas fossem mais fortes. Eles estão atrás de nós, eles ainda estão atrás de nós, estão nos levando um por um. Soluçando, Sam deu mais um passo. Havia tanto tempo que sentia frio que estava se esquecendo de como era sentir-se quente. Usava três pares de meias, duas camadas de roupa de baixo por sob uma túnica dupla de lã de carneiro e, por cima disso tudo, um espesso casaco almofadado, que o protegia do aço frio de sua cota de malha. Sobre a camisa usava um sobretudo largo, e por cima disso um manto de tripla espessura com um botão de osso que se prendia bem abaixo de seu queixo. O capuz tombava para a frente, por cima de sua testa. Grossas luvas de peles cobriam suas mãos, por cima de finas luvas de lã e couro, um cachecol estava bem enrolado em volta da metade inferior do rosto, e, por baixo do capuz, tinha um apertado gorro forrado com velo puxado sobre as orelhas. E mesmo assim tinha frio. Especialmente nos pés, Agora nem sequer os sentia, mas no dia anterior tinham doído tanto que quase não conseguia se manter em pé, muito menos caminhar. Cada passo fazia-o querer gritar. Teria sido no dia anterior? Não se lembrava. Não dormira desde o Punho, nem uma única vez desde que o berrante tinha soprado. A menos que tivesse dormido enquanto caminhava. Poderia um homem caminhar enquanto dorme? Sam não sabia, ou, se sabia, tinha se esquecido. Soluçando, deu outro passo, A neve caía, rodopiando, à sua volta. As vezes, caía de um céu branco e, às vezes, de um negro, mas isso era tudo o que restava do dia e da noite. Levava-a nos ombros como um segundo manto, e ela empilhava-se num grande monte sobre a mochila que ele transportava, tornando-a ainda mais pesada e difícil de carregar. Seu lombo doía abominavelmente, como se alguém tivesse espetado nele uma faca e a mexesse de um lado para o outro a cada passo. Seus ombros estavam em agonia por causa do peso da cota de malha. Teria dado quase tudo para tirá-la, mas tinha medo de fazer isso. E, de qualquer forma, teria de despir o manto e o capote para chegar à cota de malha, e então o frio o pegaria.
Se eu ao menos fosse mais forte... Mas não era, e não valia a pena desejar ser. Sam era fraco, e gordo, tão gordo que quase não conseguia agüentar o próprio peso, e a cota de malha era demais para ele. Sentia-se como se ela estivesse deixando seus ombros em carne viva, apesar das camadas de tecido e forro que havia entre o aço e a pele. A única coisa que podia fazer era chorar, e, quando chorava, as lágrimas congelavam em seu rosto. Soluçando, deu outro passo. A crosta de neve estava rachada nos locais em que colocava os pés, caso contrário não julgaria que pudesse ter se movido. À esquerda e à direita, entrevistos através das árvores silenciosas, os archotes transformavam-se em vagos halos cor de laranja na neve que caía. Quando virava a cabeça, conseguia vê-los, deslizando em silêncio pela floresta, balançando para cima e para baixo e de um lado para o outro. O anel de fogo do Velho Urso, lembrou a si mesmo, e desgraçado daquele que o deixar. Enquanto caminhava, parecia-lhe que perseguia os archotes da frente, mas eles também possuíam pernas, mais longas e mais fortes do que as dele, então nunca conseguia alcançá-los. No dia anterior, suplicou-lhes que o deixassem ser um dos portadores dos archotes, mesmo que isso significasse caminhar fora da coluna, com a escuridão se aproximando. Sam desejava o fogo, sonhava com ele. Se eu tivesse fogo, não teria frio. Mas alguém lembrou a ele de que tivera um archote no início, mas o deixou cair na neve e apagou o fogo. Sam não se lembrava de ter deixado cair nenhum archote, mas supunha que devia ser verdade. Estava fraco demais para manter o braço erguido por muito tempo. Teria sido Edd quem o lembrou do archote, ou Grenn? Também não conseguia se lembrar disso. Gordo, fraco e inútil, agora até os meus miolos estão congelando. Deu mais um passo. Tinha enrolado o cachecol por cima do nariz e da boca, mas agora estava coberto de ranho e tão duro que temia que tivesse congelado e ficado preso em seu rosto. Até respirar era difícil, e o ar estava tão frio que doía inspirá-lo. - Mãe, tenha piedade - murmurou, numa voz abafada e rouca, por baixo da máscara gelada. - Mãe, tenha piedade, Mãe, tenha piedade, Mãe, tenha piedade. - A cada prece dava mais um passo, arrastando as pernas pela neve. - Mãe, tenha piedade, Mãe, tenha piedade, Mãe, tenha piedade. A mãe dele encontrava-se mil léguas para sul, em segurança, com as irmãs e o irmão mais novo, Dickon, na fortaleza em Monte Chifre. Ela não pode me ouvir, e a Mãe no Céu também não. A Mãe era misericordiosa, os septões eram unânimes em afirmá-lo, mas os Sete não tinham poder para lá da Muralha. Ali eram os velhos deuses que governavam, os deuses sem nome das árvores, dos lobos e das neves.
- Piedade - sussurrou então, para qualquer deus que estivesse ouvindo, velho ou novo, ou até para demônios -, oh, piedade, piedade de mim, piedade de mim. Maslyn gritou por piedade. Por que teria se lembrado subitamente daquilo? Não era nada que quisesse recordar. O homem tinha tropeçado para trás, deixando cair a espada, suplicando, rendendo-se, chegando mesmo a arrancar a grossa luva negra e atirando-a à sua frente como se fosse uma manopla. Ainda guinchava, pedindo trégua, quando a criatura o ergueu no ar pelo pescoço e quase arrancou sua cabeça. Nos mortos, não resta qualquer piedade, e os Outros... não, não devo pensar nisso, não pense, não se lembre, limite-se a andar, limite-se a andar, limite-se a andar. Soluçando, deu outro passo. Uma raiz escondida sob a neve pegou na ponta de seu pé, e Sam tropeçou e caiu pesadamente sobre um joelho com tanta força que mordeu a língua. Sentiu o sabor do sangue na boca, mais quente do que qualquer outra coisa que havia saboreado desde o Punho. Este é o fim, pensou. Agora que caíra, não parecia ser capaz de encontrar as forças necessárias para voltar a se levantar. Tateou um ramo de árvore e agarrou-o com força, tentando puxar-se e ficar de pé, mas suas pernas enrijecidas não conseguiam aguentá-lo. A cota de malha era pesada demais, e ele gordo demais, e fraco demais, e estava cansado demais. - Fique em pé, Porquinho - rosnou alguém ao passar, mas Sam não ligou. Vou apenas ficar deitado na neve e fechar os olhos. Não seria assim tão ruim morrer ali. Não havia como ser mais frio e, após algum tempo, não seria capaz de sentir a dor na parte de haixo das costas ou a terrível dor nos ombros, assim como já não sentia os pés. Não serei o primeiro a morrer, eles não poderão dizer que fui. Centenas de homens tinham morrido no Punho, tinham morrido por toda a sua^volta, e muitos morreram depois, ele viu. Tremendo, Sam largou a árvore e deixou-se cair na neve. Sabia que era fria e úmida, mas quase não conseguia senti'Ia através de todas as suas roupas. Fixou os olhos no alto, no céu branco, enquanto flocos de neve pousavam na sua barriga, no seu peito e nas suas pálpebras. A neve vai me cobrir como uma espessa manta branca. Ficarei quente sob a neve e, se falarem de mim, terão de dizer que morri como um homem da Patrulha da Noite. Foi o que fiz. Foi o que fiz. Cumpri meu dever. Ninguém pode dizer que quebrei o juramento. Sou gordo, fraco e covarde, mas cumpri o meu dever. Os corvos estavam sob sua responsabilidade. Foi por isso que o trouxeram. Sam não queria vir, lhes dissera que não, revelara a todos o grande covarde que era. Mas Meistre Aemon era muito velho e também
cego, por isso enviaram Sam para cuidar dos corvos. O Senhor Comandante dera-lhe as suas ordens quando acamparam no Punho. - Você não é um guerreiro. Ambos sabemos disso, rapaz. Se por acaso formos atacados, não tente provar o contrário, só vai ficar no meio do caminho. Deverá enviar uma mensagem. E não venha correndo perguntar o que a carta deve dizer. Escreva-a você, e mande uma ave para Castelo Negro e outra para a Torre Sombria. - O Velho Urso apontou um dedo enluvado para o rosto de Sam. - Não quero saber se estará tão assustado que sujará os calções e não me importa se mil selvagens saltarem a muralha uivando por seu sangue, ponha essas aves no ar, senão juro que vou persegui-lo através de todos os sete infernos e o farei lamentar amargamente por não o ter feito. - E o corvo de Mormont balançou a cabeça para cima e para baixo e crocitou:"Lamentar, lamentar, lamentar". Sam realmente lamentava; lamentava não ter sido mais corajoso, mais forte ou melhor com espadas, não ter sido um filho melhor para o pai ou irmão melhor para Dickon e as meninas. Lamentava também morrer, mas homens melhores tinham morrido no Punho, homens bons e leais, não rapazes gordos e resmungões como ele. Mas pelo menos o Velho Urso não o perseguiria no inferno. Enviei as aves. Pelo menos isso fiz bem. Tinha escrito as mensagens com antecedência, mensagens curtas e simples, falando de um ataque ao Punho dos Primeiros Homens, e então enfiou-as, a salvo, em sua bolsa para perga- minhos, esperando nunca ter de enviá-las. Quando os berrantes soaram, Sam estava dormindo. A princípio, pensou que estava sonhando com eles, mas, quando abriu os olhos, caía neve no acampamento e todos os irmãos negros estavam pegando em arcos e lanças e correndo para a muralha anelar. O único que andava por perto era Chett, o antigo intendente do Meistre Aemon, com o rosto cheio de marcas e o grande quisto no pescoço. Sam nunca vira tanto medo no rosto de um homem como no de Chett quando aquele terceiro toque chegou, gemendo, por entre as árvores. - Ajude-me a tirar os pássaros das gaiolas - pediu, mas o outro intendente virou-se e fugiu, de punhal na mão. Tem de cuidar dos cães, lembrou-se Sam. O Senhor Comandante provavelmente também havia lhe dado algumas ordens. Seus dedos estavam rígidos e desajeitados no interior das luvas, e tremia de medo e de frio, mas encontrou a bolsa dos pergaminhos e recuperou as mensagens que havia escrito. Os corvos gritavam como loucos e, quando abriu a gaiola de Castelo Negro, um deles voou em seu rosto. Outros dois fugiram antes de Sam conseguir apanhar um, e, quando o fez, deu-lhe uma bicada através da luva, de tirar sangue. Mas, de algum modo, tinha conseguido segurá-lo o suficiente para prender o
pequeno rolo de pergaminho. A essa altura, o berrante de guerra já havia silenciado, mas o Punho ressoava com ordens gritadas e o tinir do aço. - Voa! - gritou Sam quando atirou o corvo ao céu. As aves na gaiola de Torre Sombria estavam gritando e esvoaçando com tamanha ferocidade que teve medo de abrir a porta, mas obrigou-se a fazê-lo mesmo assim. Dessa vez, apanhou o primeiro corvo que tentou fugir. Um momento mais tarde, a ave abria caminho através da neve que caía, levando consigo a notícia do ataque. Depois de cumprido o seu dever, acabou de se vestir com dedos desastrados e assustados, enfiando o gorro, o capote e o manto com capuz e afivelando o cinto da espada, prendendo-o bem apertado para não cair. Então, procurou a mochila e enfiou nela todas as suas coisas, mudas extras de roupa de baixo e meias secas, as pontas de flecha e a ponta de lança de vidro de dragão que Jon lhe dera e também o velho chifre, os pergaminhos, as tintas e penas, os mapas que andara desenhando, e uma alheira, dura como pedra, que guardava desde a Muralha. Amarrou tudo e pôs a mochila nas costas. O Senhor Coman- dante disse que eu não devia correr para a muralha anelar, lembrou-se, mas também disse que não devia ir correndo para junto dele. Sam respirou fundo e percebeu que não sabia o que fazer em seguida. Lembrava-se de ficar andando em círculos, perdido, com o medo crescendo em seu interior, como sempre acontecia. Havia cães ladrando e cavalos barrindo, mas a neve abafava os sons e fazia com que parecessem distantes. Sam não via nada além de três metros, nem mesmo os archotes que ardiam ao longo da baixa muralha de pedra que rodeava o cume do monte. Será que os archotes se apagaram? Pensar nisso era assustador demais. O berrante soou três vezes, e longamente, três sopros longos quer dizer Outros. Os caminhantes brancos da floresta, as sombras frias, os monstros das histórias que o faziam gritar e tremer quando garoto, montando as suas gigantes aranhas de gelo, sedentos de sangue... Desajeitadamente, puxou a espada e, com ela na mão, caminhou pesadamente pela neve. Um cão passou correndo e latindo, Samwell viu alguns dos homens da Torre Sombria, grandes homens barbudos com machados de cabo longo e lanças de dois metros e meio. Sentia-se mais seguro na companhia deles, então seguiu-os até a muralha. Quando viu os archotes ainda ardendo no topo do anel de pedras, foi percorrido por um estremecimento de alívio. Os irmãos negros estavam em pé, de espadas e lanças na mão, observando a neve que caía, à espera. Sor Mallador Locke passou a cavalo, com o elmo salpicado de neve. Sam ficou bem afastado, atrás dos outros, procurando Grenn ou Edd Doloroso com os olhos. Se tiver de
morrer, que eu morra ao lado de meus amigos, lembrava-se de ter pensado. Mas todos os homens que o rodeavam eram estranhos, homens da Torre Sombria sob o comando do patrulheiro chamado Blane. - Aí vêm eles - ouviu um irmão dizer. - Encaixar - disse Blane, e vinte flechas negras foram puxadas de dentro de outras tantas aljavas e encaixadas em outros tantos arcos. - Pela bondade dos deuses, são centenas - sussurrou uma voz. - Puxar - disse Blane, e então: - Esperar. - Sam não conseguia e não queria ver. Os homens da Patrulha da Noite espalhavam-se atrás de seus archotes, à espera, com flechas puxadas até perto das orelhas, enquanto algo subia aquela encosta escura e escorregadia, através da neve. - Esperar - voltou a dizer Blane esperar, esperar. - E então - Soltar. As flechas sussurraram ao voar. Uma aclamação irregular surgiu entre os homens ao longo da muralha anelar, mas rapidamente morreu. - Eles não estão parando, senhor - disse um homem a Blane, e um segundo gritou: - Mais! Olhem ali, saindo de entre as árvores. E um terceiro disse: - Pela piedade dos deuses, eles rastejam. Eles tão quase aqui, eles tão aqui! Sam recuara, tremendo como a última folha na árvore quando o vento aumenta, tanto de frio como de medo. Fizera muito frio naquela noite. Até mais frio do que agora. A neve parece quase quente. Agora sinto-me melhor. Tudo que precisava era de um pouco de descanso. Talvez daqui a pouco já esteja de novo suficientemente forte para voltar a andar. Daqui a pouco. Um cavalo passou perto de sua cabeça, um animal felpudo e cinzento com neve na crina e cascos com uma crosta de gelo. Sam viu-o chegar e viu-o partir. Outro saiu da neve que caía, com um homem de negro conduzindo-o a pé. Quando viu Sam em seu caminho, xingou-o e desviou com o cavalo. Gostaria de ter um cavalo, pensou. Se tivesse um, poderia continuar. Poderia me sentar, e até dormir um pouco na sela. Mas a maior parte das montarias tinha sido perdida no Punho, e aquelas que restavam transportavam a comida, os archotes e os feridos. Sam não estava ferido. Só sou gordo e fraco e o maior covarde dos Sete Reinos. Era tão covarde. Lorde Randyll, seu pai, sempre dizia isso, e tinha razão. Sam era seu herdeiro, mas nunca mostrara valor, então o pai enviou-o para a Muralha. O irmão mais novo, Dickon, herdaria as terras e o castelo dos Tarly, e a espada Veneno do Coração, que os senhores de
Monte Chifre usavam com tanto orgulho havia séculos. Gostaria de saber se Dickon derramaria alguma lágrima pelo irmão que morreu na neve, em algum lugar para lá do limite do mundo. Por que haveria de derramar? Não vale a pena chorar por um covarde. Tinha ouvido o pai dizer exatamente isso à mãe meia centena de vezes. O Velho Urso também sabia disso. - Disparar flechas - rugiu o Senhor Comandante naquela noite no Punho, quando surgiu, de repente, montado em seu cavalo deem-lhes fogo. - Foi então que reparou em Sam ali, tremendo. - Tarly! Saia daqui! Seu lugar é com os corvos. - Eu... eu... eu enviei as mensagens. - Bom. - Empoleirado no ombro de Mormont, seu corvo ecoou: "Bom, bom" O Senhor Comandante parecia enorme com as peles e a cota de malha. Por trás do visor de ferro negro, os olhos brilhavam ferozes. - Aqui você está no caminho. Volte para as suas gaiolas. Se precisar enviar outra mensagem, não quero ter que procurá-lo primeiro. Trate de ter as aves prontas. - Ele não esperou resposta, deu meia-volta com o cavalo e trotou em torno do anel, gritando: - Fogo! Deem-lhes fogo! Sam não precisou que lhe dissessem aquilo duas vezes. Voltou para junto das aves, tão depressa quanto suas pernas gordas lhe permitiram. Devia escrever a mensagem com antecedência, pensou, para poder mandar as aves tão depressa quanto necessário. Demorou mais tempo do que deveria para acender a pequena fogueira e aquecer a tinta congelada. Sentou-se numa pedra, junto do fogo, com pena e pergaminho nas mãos, e escreveu suas mensagens. Atacados entre a neve e o frio, mas repelimo-los com flechas incendiárias, escreveu, enquanto ouvia a voz de Thoren Smallwood ressoar com uma ordem de "Encaixar, puxar... soltar". O voo das flechas fazia um som doce como uma prece de mãe. - Queimem, seus bastardos mortos, queimem - cantarolou Dywen, entre risos. Os irmãos ciavam vivas e xingavam. Todos em segurança, escreveu. Permanecemos no punho dos Primeiros Homens. Sam esperava que os outros fossem melhores arqueiros do que ele. Deixou esse bilhete de lado e pegou outro pergaminho em branco. Ainda lutando no Punho, numa nevasca pesada, escrevia, quando alguém gritou: - Continuam a vir. - Resultado incerto. - Lanças - disse alguém. Podia ter sido Sor Mallador, mas Sam não poderia jurar. Criaturas atacaram-nos no Punho, no meio da neve, escreveu, mas as repelimos com jogo. Virou a cabeça. Através da neve que enchia o ar, tudo o que via era a enorme fogueira no centro do acampamento, com homens a cavalo que se moviam, inquietos, à sua volta. Sabia que era a
reserva, pronta para abater qualquer coisa que conseguisse abrir uma brecha na muralha anelar. Tinham se armado de tochas em vez de espadas, e as estavam acendendo nas chamas. Criaturas por toda a volta, escreveu, quando ouviu os gritos vindos da face norte. Vêm ao mesmo tempo do norte e do sul. Lanças e espadas não os param, só o fogo. "Soltar, soltar, soltar" gritou uma voz na noite, e outra berrou: "Enorme pacas!", e uma terceira disse "Um gigante!" e uma quarta insistiu"Um urso, um ursol". Um cavalo guinchou e os cães começaram a ladrar, e houve tantos gritos que Sam não conseguia mais distinguir as vozes. Escrevia mais depressa, bilhete atrás de bilhete. Selvagens mortos, e um gigante, ou talvez um urso, em cima de nós, por todos os lados. Ouviu o estrondo de aço batendo em madeira, que só podia ter um significado. Criaturas sohre a muralha anelar. Luta dentro do acampamento. Uma dúzia de irmãos a cavalo passou por ele na direção da muralha leste, com galhos jorrando chamas nas mãos de todos os cavaleiros. O Senhor Comandante Mormont combate-os com fogo. Ganhamos. Estamos ganhando. Estamos agüentando. Estamos abrindo caminho pelo meio deles e nos retirando para a Muralha. Estamos encurralados no Punho, sob grande pressão. Um dos homens da Torre Sombria saiu cambaleando da escuridão e caiu aos pés de Sam. Rastejou até meio metro da fogueira antes de morrer. Perdemos, escreveu Sam, a batalha está perdida. Estamos todos perdidos. Por que tinha de se lembrar da batalha no Punho? Não queria lembrar. Isso não. Tentou forçar-se a lembrar da mãe, ou da irmã mais nova, Talla, ou daquela garota, Goiva, da Fortaleza de Craster. Alguém lhe sacudia o ombro. - Levante-se - disse uma voz. - Sam, não pode dormir aqui. Levante-se e continue a andar. Não estava dormindo, estava lembrando. - Vá embora - disse, com as palavras congelando no ar frio. - Estou bem. Quero descansar. - Levante. - A voz de Grenn, dura e rouca, erguia-se por cima de Sam, com os panos negros incrustados de neve. - O Velho Urso disse que não haveria descanso. Vai morrer. - Grenn. - Sorriu. - Não, de verdade, estou bem aqui. Continue. Já alcanço vocês, depois de descansar um pouco mais. - Não alcança - A espessa barba castanha de Grenn estava congelada ao redor de sua boca. Isso fazia-o parecer um velho qualquer. - Vai congelar, ou então ser pego pelos Outros. Sam, levante-se! Sam lembrou-se de que na noite anterior à da partida da Muralha, Pyp provocara Grenn, como costumava fazer, sorrindo e dizendo que ele era uma ótima escolha para a patrulha, porque era burro demais para ficar
aterrorizado. Grenn tinha negado com veemência até perceber o que estava dizendo. Era entroncado, com um pescoço grosso e forte (Sor Alliser Thorne chamara-o de "Auroque", tal como chamara Sam de "Sor Porquinho" e Jon de "Lorde Snow"), mas sempre tratara Sam bastante bem. Porém, foi só por causa de fon. Se não fosse Jon, nenhum deles teria gostado de mim. E agora Jon tinha sumido, perdido no Passo dos Guinchos com Qhorin Meia-Mão, provavelmente estava morto. Sam teria chorado por ele, mas essas lágrimas também se limitariam a congelar, e agora mal conseguia manter os olhos abertos. Um irmão alto, com um archote, parou junto a eles, e por um maravilhoso momento, Sam sentiu o calor em seu rosto. - Deixe-o - disse o homem a Grenn. - Quem não pode andar, está acabado. Guarde as suas forças para si, Grenn. - Ele vai se levantar - respondeu Grenn. - Só precisa de uma ajuda. O homem prosseguiu seu caminho, levando o abençoado calor consigo. Grenn tentou pôr Sam de pé. - Isso dói - este reclamou. - Pare. Grenn, está machucando meu braço. Pare. - E mais pesado que o diabo. - Grenn enfiou as mãos sob as axilas de Sam, soltou um grunhido e içou-o para cima de suas pernas. Mas, no momento em que o largou, o gordo voltou a se sentar na neve. Grenn deu-lhe um pontapé, uma sólida pancada que rachou a crosta de neve que havia em volta de sua bota e a fez voar para todo lado. - Em pé\ - Voltou a chutá-lo. - Levante-se e ande. Tem de andar. Sam caiu de lado, enrolando-se a fim de se proteger dos pontapés. Quase não os sentia, através de toda a sua lã, couro e cota de malha, mesmo assim doíam. Pensava que Grenn fosse meu amigo. Não se deve chutar os amigos. Por que não me deixa em paz? Só preciso descansar; é só isso, descansar e dormir um bocado, e talvez morrer um pouco. - Se levar a tocha, eu posso levar o gordo. De repente foi atirado ao ar frio, para longe de sua querida neve macia; estava flutuando. Havia um braço debaixo de seus joelhos, e outro sob as suas costas. Sam ergueu a cabeça e piscou os olhos. Um rosto pairou perto do seu, um rosto largo e bruto, com um nariz achatado, pequenos olhos escuros e um matagal de rija barba castanha. Já tinha visto aquele rosto, mas precisou de um momento para se lembrar dele. Paul. Paul Pequeno. Gelo derretendo escorreu por seus olhos devido ao calor da tocha. - Consegue carregá-lo? - ouviu Grenn perguntar. - Uma vez carreguei um bezerro que era mais pesado do que ele. Levei-o até a mãe, para que ele pudesse beber leite. A cabeça de Sam balançava para cima e para baixo a cada passo que Paul Pequeno dava.
- Pare - murmurou me ponha no chão, não sou um bebê. Sou um homem da Patrulha da Noite. - Soluçou. - Apenas deixe-me morrer. - Fique quieto, Sam - disse Grenn. - Poupe suas forças. Pense em suas irmãs e em seu irmão. No Meistre Aemon. Em seus pratos preferidos. Cante uma canção, se quiser. - Em voz alta? - Na cabeça. Sam conhecia uma centena de canções, mas quando tentou se lembrar de uma, não foi capaz. Todas as palavras tinham fugido de sua mente. Voltou a soluçar e disse: - Não sei nenhuma canção, Grenn. Antes sabia algumas, mas agora não sei. - Sabe, sim - disse Grenn. - Que tal "O urso e a bela donzela"? Todo mundo conhece essa. Havia um urso, um urso, um urso! Preto e castanho e coberto de pelo! - Não, essa não - suplicou Sam. O urso que tinha subido ao Punho já não tinha pelo em sua carne apodrecida. Não queria pensar em ursos. - Canções, não. Por favor, Grenn. - Então pense em seus corvos. - Nunca foram meus. - Eram os corvos do Senhor Comandante, os corvos da Patrulha da Noite. - Pertenciam ao Castelo Negro e à Torre Sombria. Paul Pequeno franziu a testa. - Chett disse que eu podia ficar com o corvo do Velho Urso, aquele que fala. Guardei comida para ele e tudo. - Balançou a cabeça. - Mas esqueci. Deixei a comida onde a escondi. - Continuou a avançar pesadamente, com o hálito branco saindo de sua boca a cada passo, e então disse, de repente: - Posso ficar com um dos seus corvos? Só um. Prometo que não deixo que Lark o coma. - Eles foram embora - disse Sam. - Lamento. - Lamento tanto. - Agora estão voando de volta à Muralha. Samwell tinha libertado as aves quando ouviu os berrantes de guerra soar uma vez mais, ordenando à Patrulha que montasse nos cavalos. Dois sopros curtos e um longo, isso era o toque de montar. Mas não havia motivo para montar, a não ser que fosse para abandonar o Punho, e isso queria dizer que a batalha estava perdida. O medo atacou-o então com tanta força que só conseguiu abrir as gaiolas. Só quando viu o último corvo erguer- -se na tempestade de neve percebeu que havia se esquecido de enviar qualquer uma das mensagens que escrevera. - Não - ele gritou então -, oh não, oh não. - A neve caía e os berrantes soavam; ahuuu ahuuu ahuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu, gritavam, a cavalo, a cavalo, a cavalo. Sam viu dois corvos empoleirados numa pedra e correu atrás deles, mas as aves bateram indo- lentemente as
asas através dos redemoinhos de neve, em direções opostas. Perseguiu um deles, com o hálito saindo de sua boca e de seu nariz em densas nuvens brancas, tropeçou e deu por si a três metros da muralha anelar. Depois disso... lembrava-se de ver os mortos saltando as pedras com flechas espetadas nos rostos e nas gargantas. Alguns estavam cobertos por cotas de malha, e outros vinham quase nus... selvagens, a maior parte, mas alguns usavam panos negros desbotados. Lembrava-se de ver um dos homens da Torre Sombria espetando a lança na barriga pálida e macia de uma das criaturas, fazendo-a sair pelas costas, e do modo como a coisa se empurrou, cambaleando pelo cabo da lança acima, estendendo as mãos negras e torcendo a cabeça do irmão até lhe fazer sair sangue da boca. Tinha quase certeza de que foi nesse momento que sua bexiga se soltou pela primeira vez. Não se lembrava de ter fugido, mas deve tê-lo feito, pois na lembrança seguinte encontrava-se junto à fogueira, a meio acampamento de distância, com o velho Sor Ottyn Wythers e alguns arqueiros. Sor Ottyn estava ajoelhado na neve, fitando sem reação o caos que os rodeava, até que um cavalo sem cavaleiro chegou e lhe deu um coice no rosto. Os arqueiros não prestaram atenção nele. Estavam disparando flechas incendiárias contra sombras na escuridão. Sam viu uma criatura ser atingida, ser engolida pelas chamas, mas, atrás dela, havia uma dúzia de outras e uma enorme silhueta pálida que devia ser o urso, e pouco depois os arqueiros ficaram sem flechas. E então Sam deu por si sobre um cavalo. Não era o seu cavalo, e também não se recordava de ter montado nele. Talvez fosse o cavalo que esmagara o rosto de Sor Ottyn. Os berrantes ainda soavam, por isso esporeou o cavalo e virou-o na direção do som. No meio da carnificina, do caos e da neve soprada pelo vento, encontrou Edd Doloroso montado em um garrano, com um estandarte negro sem adornos flutuando numa lança. - Sam - disse Edd quando o viu não quer me acordar? Estou tendo um pesadelo terrível. Mais homens montavam a cada momento que passava. Os berrantes de guerra estavam chamando. Abuuu ahuuu ahuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu. - Eles saltaram a muralha oeste, senhor - gritou Thoren Smallwood para o Velho Urso, enquanto lutava para controlar o cavalo. - Vou enviar reservas... - NÃO! - Mormont teve de berrar a plenos pulmões para ser ouvido sobre os berrantes. - Chamem-nos de volta, temos que abrir caminho para fora daqui. - Ficou em pé nos estribos, com o manto negro batendo ao vento e o fogo brilhando em sua armadura, - Ponta de lança! - rugiu. - Formação em cunha, avançamos. Pela encosta sul, e depois para leste!
- Senhor, a encosta sul está cheia de criaturas! - As outras são demasiado inclinadas - disse Mormont. - Temos... Seu garrano relinchou, empinou-se e quase o atirou ao chão quando o urso surgiu cambaleando através da neve. Sam voltou a urinar nas calças. Pensava que não tinha sobrado mais nada dentro de mim. O urso estava morto, pálido e apodrecendo, com o pelo e a pele descolados do músculo e metade do braço direito queimada até o osso, mesmo assim avançava. Só os seus olhos viviam. Azul-claros, tal como o Jon dizia. Brilhavam como estrelas congeladas. Thoren Smallwood avançou, com a espada brilhando, laranja e vermelha à luz da fogueira. Sua estocada quase arrancou a cabeça do urso. E então a fera arrancou a dele. - AVANÇAR! - gritou o Velho Urso^ dando meia-volta. Já iam a galope quando atingiram o anel. Antes, Sam sempre tivera medo demais para saltar a cavalo, mas quando a pequena muralha de pedra se aproximou dele, soube que não tinha alternativa. Esporeou o animal, fechou os olhos e choramingou, e o garrano levou-o para o outro lado, sem que ele soubesse como, sem que soubesse como, o garrano levou-o para o outro lado. O cavaleiro à sua direita caiu num emaranhado de aço, couro e carne de cavalo gritante, e então as criaturas formigaram em volta dele e a cunha se fechou. Mergulharam encosta abaixo, em corrida, através de mãos negras que tentavam agarrá-los, ardentes olhos azuis e neve soprada pelo vento. Cavalos tropeçaram e rolaram, homens foram varridos de cima de suas selas, tochas rodopiaram pelo ar, machados e espadas retalharam carne morta, e Samwell Tarly soluçava, agarrando-se desesperada- mente ao cavalo, com uma força que nunca soube que possuía. Seguiu no meio da ponta de lança em fuga, com irmãos de ambos os lados, e também à frente e atrás dele. Um cão acompanhou-os durante parte do caminho, saltando pela encosta nevada abaixo, enfiando-se entre as patas dos cavalos e saltando para fora de seu caminho, mas não conseguiu manter o ritmo. As criaturas mantinham-se firmes em suas posições e eram atropeladas e pisoteadas. Mesmo quando caíam, tentavam agarrar espadas, estribos e as patas dos cavalos que passavam por elas. Sam viu uma delas rasgar a barriga de um cavalo com a mão direita, enquanto se agarrava à sela com a esquerda. De repente, as árvores estavam em volta deles, e Sam atravessava chapinhando um riacho gelado, com os sons do massacre minguando lá atrás. Virou-se, com a respiração presa devido ao alívio... até que um homem de negro saltou dos arbustos e o arrancou de cima da sela. Sam nunca chegou a ver quem foi; montou num instante e no seguinte afastava-se a galope. Quando tentou correr atrás do cavalo, seus pés se prenderam numa raiz, e ele caiu com força, batendo o rosto no chão, e
ficou deitado, chorando como um bebê, até que Edd Doloroso o encontrou. Essa era a sua última recordação coerente do Punho dos Primeiros Homens. Mais tarde, horas mais tarde, deu por si tremendo entre os outros sobreviventes, metade montada, metade a pé. Encontravam-se já a quilômetros do Punho, embora Sam não se lembrasse de como isso tinha acontecido. Dywen trouxe para baixo cinco cavalos de carga, bem carregados de comida, óleo e archotes, e três tinham chegado ali. O Velho Urso fez com que redistribuísse as cargas, para que a perda de qualquer um dos cavalos e de suas provisões não fosse uma catástrofe muito grande. Tirou garranos dos homens saudáveis e deu-os aos feridos, organizou os caminhantes e colocou archotes para defender os flan- cos e a retaguarda. Tudo que tenho de jazer é andar, disse Sam a si mesmo enquanto dava aquele primeiro passo de volta para casa. Mas antes mesmo de uma hora ter passado, ele já começava a sentir dificuldades e a ficar para trás... Via que agora também estavam ficando para trás. Lembrou-se de Pyp contar, certa vez, como Paul Pequeno era o homem mais forte da Patrulha. E deve ser, para me levar no colo. Mesmo assim, a neve estava ficando mais profunda, o terreno, mais traiçoeiro, e os passos de Paul começavam a encurtar-se. Mais cavaleiros passaram, feridos que olhavam para Sam com olhos baços e sem curiosidade. Alguns porta-archotes também passaram por eles. - Está ficando para trás - disse-lhes um deles. O seguinte concordou. - Ninguém vai esperar por você, Paul. Deixe o porco para os mortos. - Ele prometeu que eu podia ficar com um pássaro - disse Paul Pequeno, embora Sam não o tivesse feito, não exatamente. Não são meus para dá-los. - Quero ter um pássaro que fale e venha comer milho na minha mão. - Maldito idiota - disse o homem do archote. E depois desapareceu. Passou-se algum tempo antes de Grenn parar de repente. - Estamos sozinhos - disse ele numa voz rouca. - Não consigo ver os outros archotes. Aquilo era a guarda de retaguarda? Paul Pequeno não tinha uma resposta para lhe dar. O grandalhão soltou um gru- nhido e ajoelhou-se. Seus braços tremiam quando pousou cuidadosamente Sam na neve. - Não posso levá-lo mais. Queria, mas não posso. - Tremeu com violência. O vento suspirava por entre as árvores, atirando uma neve fina no rosto deles. O frio era tanto que Sam se sentia nu. Procurou os outros archotes, mas tinham desaparecido, todos eles. Só havia aquele que Grenn transportava, com chamas erguendo-se como sedas de um
laranja-claro. Conseguia ver a escuridão através delas. Aquele archote irá se apagar em breve, pensou, e estamos sozinhos, sem comida, amigos ou fogo. Mas enganava-se. Não estavam nada sozinhos. Os galhos mais baixos da grande sentinela verde largaram a sua carga de neve com um plop suave e úmido. Grenn girou sobre si mesmo, projetando o archote à frente. - Quem está aí? - uma cabeça de cavalo emergiu da escuridão. Sam sentiu um momento de alívio, até ver o cavalo. A geada cobria-o como uma película de suor congelado, e um emaranhado de entranhas rígidas e negras saía de sua barriga aberta. Sobre o dorso, trazia um cavaleiro branco como gelo. Sam soltou um som lamen- toso vindo do fundo da garganta. Estava tão assustado que poderia ter se urinado mais uma vez, mas tinha o frio dentro de si, um frio tão violento que parecia que a bexiga havia congelado. O Outro deslizou graciosamente da sela e ficou em pé na neve. Era magro como uma espada, e de um branco leitoso. Sua armadura ondulava e transformava-se quando ele se movia, e seus pés não quebravam a crosta de neve recém-caída. Paul Pequeno desprendeu o machado de cabo longo que trazia preso às costas. - Por que fez mal a esse cavalo? Era o cavalo de Mawney. Sam tateou em busca do cabo de sua espada, mas a bainha estava vazia. Lembrou-se tarde demais que a perdera no Punho. - Vá embora! - Grenn deu um passo, estendendo o archote à sua frente. - Vá, senão vai arder. - Empurrou-o com as chamas. A espada do Outro cintilou com uma tênue incandescência azul. Moveu-se na direção de Grenn, rápida como um relâmpago, golpeando. Quando a lâmina de um azul gelado roçou as chamas, um grito agudo apunhalou os ouvidos de Sam, afiado como uma agulha. A ponta do archote caiu de lado e desapareceu sob um grande monte de neve, com o fogo extinto num instante. E tudo o que restou na mão de Grenn foi um pequeno pedaço de madeira. Atirou-o no Outro, praguejando, no momento em que Paul Pequeno avançava com seu machado, O medo que então dominou Sam foi pior do que qualquer medo que já sentira, e Samwell Tarly conhecia todos os tipos de medo. - Mãe, tenha piedade de mim - chorou, esquecendo os deuses antigos em seu terror. - Pai, proteja-me, oh, oh,., - Os dedos encontraram o punhal e Sam encheu a mão com ele. As criaturas tinham sido coisas lentas e desajeitadas, mas o Outro era ligeiro como neve no vento. Esquivou-se do machado de Paul, com a armadura ondulando, e sua espada de cristal torceu-se, girou e deslizou entre os anéis de ferro da cota de malha de Paul, através de couro e lã, de osso e carne. Saiu por suas costas com um 555555555555ilvo e Sam
ouviu Paul dizer "Oh" quando deixou cair o machado. Empalado, com o sangue fumegando em volta da espada, o grandalhão tentou agarrar seu assassino com as mãos e quase conseguiu antes de cair. Seu peso arrancou a estranha espada pálida das mãos do Outro. Vá em frente agora. Pare de chorar e lute, seu bebê. Lute, covarde. Era o pai que ouvia, era Alliser Thorne, era o irmão Dickon e o garoto Rast. Covarde, covarde, covarde. Soltou um risinho histérico, perguntando a si mesmo se fariam dele uma criatura, uma criatura enormemente gorda sempre a tropeçar nos próprios pés mortos. Vá em frente, Sam. Aquele agora seria Jon? Jon estava morto. Consegue ir em frente, consegue, apenas vá em frente. E então viu-se tropeçando para a frente, realmente caindo mais do que correndo, fechando os olhos e projetando cegamente o punhal adiante, com ambas as mãos. Ouviu um crac, um som como aquele que o gelo faz quando se quebra sob os pés de um homem, e em seguida um guincho tão estridente e penetrante que cambaleou para trás com as mãos nos ouvidos, e estatelou-se sobre o traseiro. Quando abriu os olhos, a armadura do Outro escorria por suas pernas em riachos, enquanto o sangue azul-claro silvava e fumegava em volta do punhal negro de vidro de dragão que trazia espetado na garganta. Estendeu duas mãos brancas como osso para arrancar a arma, mas onde os dedos tocavam a obsidianafumegavam. Sam rolou sobre o flanco, com olhos esbugalhados enquanto, o Outro minguava e se liqüefazia, dissolvendo-se. Em vinte segundos, sua carne tinha desaparecido, afastando-se em redemoinhos de névoa branca. Por baixo, havia ossos parecidos com vidro leitoso, brancos e brilhantes, e também eles se derretiam. Por fim, só o punhal de vidro de dragão ficou, embrulhado em vapor, como se estivesse vivo e transpirando. Grenn dobrou-se para apanhá-lo, e atirou-o imediatamente no chão. - Mãe, como está.frio! - Obsidiana. - Sam ajoelhou-se com dificuldade. - Chamam de vidro de dragão. Vidro de dragão. - Riu e chorou e dobrou-se para vomitar a sua coragem na neve. Grenn ajudou Sam a ficar em pé, verificou se Paul Pequeno tinha pulso e fechou seus olhos, e depois voltou a pegar o punhal. Daquela vez conseguiu segurá-lo. - Fique com ele - disse Sam. - Não é covarde como eu. - Tão covarde que matou um Outro. - Grenn apontou com a faca. - Olhe para lá, entre as árvores. Luz cor-de-rosa. A alvorada, Sam, A alvorada. Aquilo deve ser o leste. Se seguirmos naquela direção, alcançaremos o Mormont.
- Se você diz. - Sam deu um chute numa árvore com o pé esquerdo, para desprender toda a neve. Depois com o direito. - Eu tento, - Fazendo uma careta, deu um passo. - Tento de verdade. - E depois outro.